Lacieverso

capítulo 1

uma conversa em maio

Eu vi você cair. Diversas e diversas vezes, contra um céu de estrelas flutuantes. Suas mãos buscaram o vazio e alcançaram as imagens refletidas das folhas de outono. Seu corpo atingiu as águas geladas, e seu fôlego, roubado pela correnteza.

Eu vi você cair.

Demoraria para acharem você, eu pensava ao acordar. Seu rosto pálido e arroxeado provaria que não foi o frio de novembro que matou você. Não, fomos nós.

Fomos todos nós.

Admito que a realidade me assombra mais do que os sonhos. A ignorância não é uma benção. Por muito tempo, quis penetrar os segredos de sua mente, tentar entrar em seu imo e permanecer lá aquecendo-me junto à sua solidão. E, no embalo de seu frêmito, entendê-lo por inteiro.

Num abrir de olhos, o mar me encontrou do lado frio de minha cama; azul gelo corta tudo que vejo.

— Você me culpa? — sussurro para a escuridão, quebrada pelos primeiros raios dessa manhã fria de maio.

Sua falta de resposta dói mais que uma afirmativa. Apenas olhos azuis, os quais eu tanto amo, me encaram de volta. Você veio até mim na escuridão do quarto, sentou-se em minha cama e apenas esperou.

Você se lembra?思いだして

Sim, as imagens frescas como o sangue em minhas mãos. As memórias ecoam pela catedral de meu coração, e ressoam no altar que ergui para você. Melodias singelas clamam erros e meias verdades. Sua voz sussurra clemências, enquanto a minha grita para ser compreendida. A canção da dúvida se propaga pela abadia e entoa palavras de salvação. Quem foi o culpado? Você, por decidir? Ou eu, por levá-lo a isso? Há muito que eu queria ter dito e feito, mas, agora, só me restam os sonhos.

E um desejo.

Só que isso eu já acho impossível.

capítulo 2

entedie-me

A chuva caía com uma miríade de gotas prateadas, enquanto luz azul do pequeno aparelho nas mãos de Dave nos iluminava. Nossa cobertura improvisada, um forte de travesseiros, era pequena e cheirava à infância. O sol morria atrás das nuvens, e a escuridão se arrastava sobre nós como uma velha amiga. A terceira componente daquela dupla incansável. Havia apenas Dave e eu, algo que garanti com o passar dos anos.

— Você precisa foder, Alex. — Revirei os olhos no escuro do quarto.

Naqueles tempos, minha vida se resumia a duas coisas: evitar pensar que as minhas notas decadentes poderiam me fazer perder a bolsa da faculdade; e evitar pensar que falhava no meu relacionamento com Dave. Até então, ignorar tudo estava funcionando muito bem.

— Dar absurdamente esse cu quase virgem de novo, e manter alguém ao seu lado. Quanto tempo faz desde Iza?

— Não precisa mencionar esse nome — eu arquejei. — Eu preciso é estudar mais anatomia, senão perco na matéria. O William faz provas difíceis… vou acabar morrendo antes de me formar.

— Por isso mesmo. Por que aprender a teoria quando se pode aprender na prática?

— Você sabe que não funciona assim, né?

Naquele dia em particular, ocupamos nossa tarde em desempacotar o último de seus pertences das caixas, para o quarto em que ele ocuparia na nova casa da sua mãe. Achamos vários tesouros na mudança; várias cartas de amor — que não me deixou abrir —, as quais Dave ficou vermelho ao ver, dentro de cadernos antigos, com algumas histórias infantis rabiscadas em garranchos; e o prêmio máximo: seu velho <em>Nintendo 64</em>, que ainda funcionava. É claro, nosso impulso seguinte foi gastar nossa tarde preguiçosa com campeonatos, até que Dave propôs:

— Se eu ganhar essa corrida, você tem que sair hoje à noite.

Eu nem levantei os olhos da televisão. Eu já tinha planos de sair, porque, afinal, era Halloween, e era uma tradição na cidade recolher doces das casas de estranhos. Mas por causa da previsão de tempo ruim — diziam que ia ser a noite mais fria em quarenta anos, e mal começara o inverno —, além da chuva, Dave ficou receoso de sair, e por isso estávamos em seu quarto fazendo nada. Estava com preguiça, mas… se tivesse sido mais sábio, eu teria me levantado do meu confortável travesseiro, xingado Dave, pegado minhas coisas e ido para o andar de baixo para conversar com sua mãe, Kate, enquanto ela preparava o nosso jantar. Teria sido a aposta mais segura que eu faria naquela noite, e eu não teria desafiado o Destino.

Só que, se há algo que você precisa saber sobre mim, é que eu nunca perdi no <em>Mario Kart</em>.

Eu me ajustei, sentia o fogo da competição queimar por dentro. Dave me conhecia. Pior, ele sabia exatamente o que fazer para me motivar. Eu ainda estava indisposto a namorar qualquer pobre alma que ele me arranjasse, mas uma competição? Merda, eu precisava de uma. Qualquer coisa para tirar meus pensamentos do manguezal de onde estavam.

Acho que tínhamos aquilo em comum, Jesse.

Eu peguei o travesseiro e gritei contra ele quando o maldito casco vermelho me atingiu e eu perdi.

— Não acredito! — Minha voz abafada saiu sufocada em minha garganta, enquanto a risada alta de Dave ecoava pelo quarto.

Eu me joguei na cama de casal, frustrado. Meu amigo sentou-se ao meu lado, e observava a minha idiotice.

— Pare de ser tão dramático e pegue seu telefone — Dave disse, e eu suspirei teatralmente.

Ele me acertou nas costelas e desisti. Tirei meu celular do bolso e o entreguei.

— Quando você vai jogar fora esse pedaço de lixo? — reclamou; usava seus dedos esguios para liberar a senha de destrave da tela, que conhecia tão bem quanto a sua própria.

— No dia de São Nunca. Pare de reclamar e termine logo com isso.

Alguns momentos de silêncio caíram sobre nós. Eu comecei a contar as estrelas do seu teto. Havíamos passado algumas tardes para colocá-las na ordem da constelação de Virgem. Quase caí em um sono preguiçoso. Ter a presença confortável de Dave e os passos inquietos de Kate no andar de baixo eram tudo para mim.

Mas então, a interrupção.

Dave foi direto.

— Você gosta quando as pessoas mordiscam o lóbulo da sua orelha?

— Dave, nós nunca vamos ficar juntos. — Eu sorrio e coloco uma mão sobre seus olhos; ele recuou, me xingando no processo.

Apesar disso, ele continuou:

— Apenas responde. A próxima: Eu gosto de passar meus dias fazendo…

Eu levantei minha meia sobrancelha — fruto da adolescência rebelde em que eu as raspava e nunca mais tinham crescido da mesma maneira.

— Pra quem você tá mandando mensagens?

— São só algumas perguntas do <em>app</em>, pro seu encontro desta noite. A propósito, você ainda não respondeu às perguntas dele.

— Ah, esta é uma pergunta fácil. Eu passo meus dias sendo babá de um bebezão, que tem problemas em sair de casa e acha que eu preciso de um namorado. — Dave não achou minha resposta tão engraçada, então minha barreira improvisada foi socada e algumas penas flutuaram no ar enquanto minha risada ecoava.

Eu nunca vira Dave tão determinado em achar alguém para mim. Normalmente ele apenas soltava algumas alfinetadas, porém, com aquela aposta perdida no <em>Mario Kart</em>, era imparável. Eu não pensei em nada daquilo naquela época.

Você significava nada para mim naquela época.

— Quem é o cara, de qualquer forma? Como você o conheceu? — Tentei olhar para o aplicativo de conversa, em que ele, furiosamente, digitava, mas ele desviou as mãos. — E deveria lembrá-lo que tinha um morto-vivo nelas? — e continuou suas travessuras.

Não havia salvação para mim.

— <em>Tinder</em> — ele disse simplesmente.

— <em>Tinder</em>… Dave! — xinguei.

— Você precisa, desesperadamente, foder. Fique feliz que não foi o <em>Grindr</em>. Prometo que apenas coloquei suas melhores fotos. Eles gostaram da sua tatuagem na cara, pelo visto. Eu filtrei os resultados… — Aquela foi a última gota.

Tirei o telefone de suas mãos e olhei para a tela. Fiquei surpreso pelas longas conversas com várias pessoas. Quando aquele esquema tinha ido tão longe?

— Ao menos, dê uma chance a este daqui. Ele parece emo, porém, acho que faz o seu tipo — ele pediu, e olhou por cima do meu ombro.

— Eu não preciso de um namorado, Dave, eu já te disse isso um milhão de vezes… — suspirei pesadamente.

Meu amigo apenas abaixou seus ombros e assentiu.

— Apenas acho que você precisa de uma vida às vezes… você está feliz assim desse jeito?

Aquela era uma pergunta de difícil resposta. Não queria machucar os sentimentos de Dave. Eu estava feliz. Ao menos, era o que pensava. Não conhecia nada diferente daquilo, e evitava pensar muito sobre coisas que não poderia obter. Baguncei seus cabelos lavanda, e suspirei de novo.

Algumas coisas eram difíceis demais.

Eu me levantei da cama e passei a mão pelos meus próprios fios ruivos no processo.

— Com quem você falou? — disse, desistindo um pouco. Eu vi seus olhos cor de mel brilharem levemente, e, no fundo, era aquilo que importava. Todo aquele sofrimento valia a pena. — Posso ao menos ver as opções?

— Você vai gostar desse, sem dúvidas. Seu nome é Jesse…

— Como o cantor?

— Como assim?

— Ah, ser jovem e inocente. Essa geração não sabe nada de história. — Engoli uma risada. Ainda assim, continuei. — O que tem de tão especial nesse tal de Jesse?

— Ele se interessou pela sua tatuagem. Disse que gostaria de ver mais por si mesmo. Também está “por perto” e “tem local”. Não entendo o que ele quis dizer com isso, mas se está próximo, talvez seja uma coisa boa, não é?

Eu consegui cobrir o rosto com as mãos e segurar uma risada histérica; essa era a coisa da boa da amizade com Dave. Ele sempre acreditava no lado bom das pessoas.

— Me mostre a foto dele — eu disse, e tentava ao máximo manter o rosto sério.

Dave era inocente para o lado obscuro da internet; e eu, ao menos, queria saber se lidava com um homem ou um robô. Eu não pretendia liderar a <em>skynet</em> à sua próxima rebelião em meu apartamento…

Dave fez o que eu pedi, e eu admirei as pequenas imagens no aparelho. Não havia muito a ser visto. A primeira era de bíceps, o homem com certeza malhava muito. A segunda foi de seu tanquinho. A terceira…

— Opa, opa, vou ter que usar a proteção infantil no meu celular se você continuar usando esse aplicativo — comentei, ficando tão vermelho quanto os meus cabelos.

Quem deixava esse tipo de foto no perfil?

Dave deu de ombros.

— É só uma bunda, Alex. Você já viu bundas antes. Cresça um pouco, vá. — Ele riu de deboche, mas o conhecia bem o suficiente para notar o nervosismo.

Tentou pegar meu celular de volta, mas eu tinha vantagem, e ele, chance alguma. Havia uma quarta foto.

Aquela chamou a minha atenção.

— Sabia — ele disse. E, maldição, Dave me conhecia como a palma de sua mão. —  Não quer conhecê-lo agora?

Naquele tempo, Jesse, eu não sabia de nada.

Naquele tempo, o mundo era bem mais simples.


Foi um erro sair sem um guarda-chuva, no entanto, uma vez que estava decidido a ir, eu queria encontrá-lo imediatamente. Chuva pesada caía sobre meus ombros, mas a jaqueta impermeável era o suficiente para me proteger. Era, aparentemente, perto o bastante para que eu não me cansasse apenas por andar; e meu “futuro namorado”, nas palavras de Dave, estaria me esperando em sua casa.

Nada poderia dar errado, não é mesmo?

Ser brutalmente assassinado não estava em meus planos para aquela noite, por exemplo. Um carro solitário passou velozmente por mim, e jorrou água suja da rua. Fiquei encharcado e encardido.

— Filho da p…

Olhei para meu estado. Eu não poderia ir para um encontro daquela forma. Pensei em desistir completamente da “oportunidade incrível” que Dave me arranjara, ou ir para casa me trocar antes. Mais atrasado do que eu já estava, impossível. Meu provável amante poderia esperar mais alguns minutos em minha indecisão.

Qualquer que fosse a minha escolha, teria que atravessar aquela ponte.

O rio que corria por debaixo dos meus pés desembocava no mar, e com o rugido da tempestade, os respingos de água alcançavam as pedras, que formavam os pilares da ponte, a qual sacudia em resposta. Eu tremia com o vento frio, que balançava as cordas de suspensão e que bramava com vontade em meus ouvidos; trovoava em algum lugar ao longe. Ao mar, relampejos. Francamente, a noite poderia ter terminado bem ali. Algum ser superior poderia resetar o dia, me fazer não perder a corrida do <em>Mario Kart</em> e, assim, não perderia aquela aposta maldita.

Quando, de todas as vezes que jogamos, Dave ficara tão bom naquele jogo? Eu provavelmente assustaria meu encontro com meu mau humor e estado lamentável.

Não me recordava o motivo, mas peguei o telefone, talvez para cancelar, ou para ver as horas. Lembrava de dar o primeiro passo naquela ponte e de puxar o aparelho. Lembrava do vento forte nos cabelos e de levantar a cabeça. Lembrava do capuz cair e a chuva molhar minhas pálpebras.

A luz amarela sobre a jaqueta vermelha.

Quando encontrei Jesse pela primeira vez, não imaginava que ocuparia uma parte tão grande do meu coração. Ali, naquela ponte, eu cruzava meu caminho com o Destino.

A cena de um filme em câmera lenta. O vi, a jaqueta vermelha e os tênis xadrez sobre o parapeito da ponte. O ofegar de esforço, o olhar vermelho e decidido. Uma memória, tão revirada que poderia ser nova, gritou:

<em>— Alex, a culpa é sua!</em>

<em>e era, era, era</em>

E, antes que percebesse, o telefone escorreu das mãos molhadas e corri.

Foi com uma força, que eu não sabia possuir, que meus braços alcançaram os seus que caíam; e, igual a duas bonecas, despencamos com um estrondo de trovão no chão molhado; a dor nos lembrou da vida que quase escapou no rio selvagem abaixo. Respirei pesadamente, como se tivesse me afogado. Mas era isso que acontecera. Afoguei-me em memórias, e continuava vivo em uma. Não via o homem em meu colo. Era outra pessoa, uma outra noite.

Apenas notei o erro quando senti sua mão pesada em meu peito.

— Ei! Me larga!

Arfei, e tentei me situar. Pois eu estava no presente, não no passado, com água a molhar as mãos, e não sangue. Ajeitei os cabelos de qualquer modo, e, finalmente, vi quem eu salvara.

— Desculpe…  — Tentei dizer, a voz fraca e rouca.

Tremia. Mãos longas e alinhadas me empurraram; ficamos distantes um do outro, porém, ainda sentados debaixo da chuva, com a respiração desencontrada.

Estávamos vivos.

Comecei a analisar você. Não mais que um rapazote magricela. Seus olhos, impossivelmente azuis, me encararam com raiva, e então, o céu acima de nós, como se, pela primeira vez, notasse a chuva. Os cabelos rebeldes loiros recebiam as gotas aleatórias, e correu uma mão por eles para afastá-los da testa. Era como se, finalmente, percebesse onde estava, e como estava. Você era uma confusão de casacos vermelhos, jeans apertados e olhos assustados. Havia um machucado em seu rosto, acima do olho esquerdo. Um hematoma que começava a arroxear, e parecia ter sido um golpe bem feio.

— Está tudo bem…? — foi a minha primeira pergunta.

Eu tinha tantas. Centenas. Milhares. Mas a verdade era só que eu queria ouvir a sua voz. Queria quebrar o feitiço que você pusera em mim; da aura etérea que se formava à minha frente, do espelho d’água da miragem, feita pela chuva e pela luz amarelada do poste. Eu queria saber se você existia mesmo.

Você, é claro, foi bastante eloquente.

— Vai se foder.

— Olha, eu posso ligar para a polícia… — Foi quando notei a falta do celular, e percebi que o havia largado a alguns metros de nós. Levantei-me e fui em sua direção para pegá-lo. Você permaneceu parado, quieto, olhava para o céu. — … Ou para um hospital se for necessário. — Acrescentei.

— Não precisa. Me deixe em paz.

Meu celular estava com parte da tela rachada e havia se desligado. Eu esperaria chegar em casa para cumprir a promessa de ligar para algum daqueles lugares. Rezava para que, ao menos, o aparelho ligasse de novo depois de passar a noite no arroz… suspirei e olhei de novo para você.

Parecia um animal ferido. Perdido em sua dor, abandonado à própria sorte.

— Você vai ficar aí? Não tem pra onde ir?

Um dar de ombros. Era a sua resposta para tudo. Como se não ligasse para mais nada, como se o destino não importasse. Meu coração pesou, culpado. Eu não poderia abandoná-lo ali, depois de tirá-lo das garras do rio, e deixá-lo seguir seu caminho. Simplesmente virar as costas. Não era do meu feitio.

E por isso sempre me fodia.

Já esquecido completamente do encontro, sentei-me ao seu lado no meio-fio.

— Qual é o seu nome?

Seu olhar, ríspido e feroz, quase me fez correr, no entanto, não me daria por vencido tão facilmente. Um animal ferido precisando de resgate.

— Por que você se importa?

— Eu não me importo. Qual é o seu nome?

Você me olhou com uma expressão confusa, e algo em seu interior quebrou. Os seus ombros baixaram, e as barreiras, cuidadosamente erguidas contra todas as pessoas ao seu redor, não importavam mais.

Ainda assim, você não derramou uma lágrima.

Você estava cansado de chorar.

— Jesse — murmurou, tão baixo que sua voz quase foi roubada pelo ronco da tempestade, mas eu a ouvi.

Eu juro pelo túmulo da minha mãe que a ouvi. Baixinho e perdido.

— Meu nome é Alex Morris. — Tentei transmitir confiança. — Você quer ir pro meu apartamento?

Você pareceu surpreso, mas que alternativa você tinha? Seus olhos se arregalaram, surpresos, e volveram de mim para o parapeito; e de lá, para o horizonte.

Você se levantou, mais uma vez.

Eu o segui, tomei a sua mão, e o guiei em direção à minha casa.

Dizer não me importar foi a maior mentira que contei na vida.

capítulo 3

correnteza

O caminho para a minha casa foi lento. E o pior, com um silêncio sepulcral. Somente a chuva nos acompanhava, caía sobre nossos ombros como lâminas de gelo. Eu não sabia direito como me portar, porque era a primeira vez que me colocava na posição de trazer um completo estranho, até então, para o meu apartamento; e porque tal estranho estava completamente mudo. Cabisbaixo, desviava o olhar a todo minuto para trás, como se fugisse de algo. Muito estranho e preocupante.

Eu era um solucionador de problemas em primeira instância, mas aquilo parecia ser uma dor de cabeça que não teria fim. Concentrei-me apenas em alcançar o meu apartamento com passos longos, para enfrentar a tempestade que se formava sobre a minha cabeça e dentro do meu coração. O que eu faria com você?

Revirei as chaves dentro do meu bolso enquanto dava uma olhada para trás. A cabeça loura e baixa denunciava várias nuvens pesadas, além da chuva sobre nós. Eu admitia que havia uma semente de curiosidade em mim, porém, tratei logo de podá-la. Não queria intimidá-lo. Mais do que tudo, queria apenas que você ficasse bem.

Talvez eu conseguisse distraí-lo um pouco… comida geralmente me colocava de bom humor.

Eu pediria uma pizza ou algo do tipo assim que chegasse em casa, decidi. As pessoas sempre ficavam mais alegres de estômago cheio.

E, ao dar uma última olhada em você, certamente ficaria melhor com um sorriso no rosto.

— Chegamos — eu disse, e tentei parecer animado.

Você finalmente levantou os olhos azuis dos tênis com padrões xadrez e olhou em volta.

Se pareceu reconhecer o local, não demonstrou nada. Não estávamos longe da faculdade do qual eu era aluno, e o bairro era populado por universitários e funcionários da Universidade. Claro, havia um ou outro assalto, um ou outro assassinato, mas fatos da vida urbana, não era mesmo? Em geral, era seguro.

— Venha.

Eu girei as chaves nos dedos, na tentativa de fazer uma gracinha, porém, as chaves caíram com um som pesado no chão, me distraindo; e eu tive que pedir desculpas a você pela confusão. Estava me mostrando um tolo. Sem mais delongas, eu abri a porta, e o bafo quente do aquecedor caiu sobre nós. Eu limpei meus pés no carpete, e fiz menção para que você entrasse atrás de mim. Você me seguiu, atento, os olhos exploravam cada canto empoeirado do corredor, que dividia os apartamentos daquela casa geminada. Meus vizinhos com certeza já dormiam, ou estavam chapados demais para perceber que eu chegara em casa tão tarde da noite. De qualquer forma, não era como se eu devesse satisfação a eles.

Sua insegurança era notável, então uma necessidade inconsciente surgiu em mim, e, antes que eu pudesse me conter, me vi alcançar seus fios rebeldes, que ainda estavam bem úmidos da chuva que tomamos; acariciei sua cabeça levemente, arrepiando e espalhando água pelo corredor. Isso pareceu chocá-lo um pouco, porque você elevou o olhar e arregalou-o, igual a um cervo assustado. Pensei que tivesse cometido um erro, porque era algo que eu sempre fazia quando Dave estava para baixo, mas resolvi não me perder muito naquilo. Quando me virei para encará-lo, notei aquele machucado outra vez… talvez você não quisesse ser tocado.

— Ern… — hesitei. — Vamos entrar? — Eu dei passagem para que entrasse primeiro no apartamento, e uma escolha.

Você ainda poderia dar as costas e ir embora, mas eu sabia que não tinha mais para onde ir. Ao menos, não naquela noite.

Eu era sua única salvação, como o diabo em frente à Cruz.

Coitado, pensei. Podia ter uma opção melhor do que a mim, que sou um pé rapado sustentado pela bolsa da faculdade. Podia ter sido um CEO rico que o tiraria da miséria e o sustentaria, como em um daqueles romances. Esse rapaz merecia todos os mimos possíveis.

Ao menos, era o que parecia. Tirando o ferimento que ameaçava ficar muito feio no supercílio, eu não podia negar que você era muito bonito. Muito meu tipo, eu temia. Olhos azuis profundos, que eu já havia notado, e que escondiam muitas histórias. Eu saíra de uma correnteza, e estava prestes a me afundar em outra.

Sorte a minha.

Você, ao se ver sem saída, entrou primeiro na minha casa. Contudo, não precisou caminhar muito para se ver em um impasse.

— Você gostaria de tomar um banho? — Eu comecei a retirar meus sapatos, e os coloquei na cômoda perto da entrada, como era o meu costume.

Depois me preocuparia em limpá-los, o importante seria acomodar a minha inesperada visita primeiro.

Meu apartamento naquela casa não era nada espaçoso. Quando eu falava que morava sem luxos, era porque eu realmente não tinha quase nada. “Quarto e sala” era uma grande hipérbole: era literalmente uma grande kitnet. Uma sala grande demais, com uma cozinha equipada e uma cama de casal nela. Ah, ao menos eu tinha máquina de lavar e secar no banheiro, não precisava dividir, como era o caso dos vizinhos. Era por isso que tinha escolhido aquele apartamento em específico.

E, também, por algo mais especial…

— É pequeno, desculpe — respondi a você, que continuava mudo e olhava para o apartamento, e tudo que eu tinha.

— É… — concordou, mas tirou seus tênis dos pés e colocou ao lado dos meus na pequena cômoda.

— Me dê seu casaco, vou pendurar.

— Obrigado. — Aparentemente, você era uma pessoa de poucas palavras, porque era só isso que eu conseguia arrancar.

— Você quer tomar um banho? — perguntei de novo e, dessa vez, você prestou atenção em mim.

— Sim… ai! — O seu casaco enroscou no ferimento, e você gemeu de dor.

— Ah, talvez devêssemos tratar disso primeiro, antes de você tomar banho. Colocar um gelo na ferida. Talvez pedir algo pra comer.

— Isso aqui não é nada. — Colocou a mão sobre a ferida, antes de gemer de novo de dor. — Já sofri coisas piores.

— Vai por mim, isso só vai piorar se você não colocar gelo. Vamos, eu acho que eu tenho uma bolsa térmica ou algo do tipo por aqui. Ou posso improvisar algo. Sente na cama, por favor.

E corri em direção à cozinha, pronto para fazer o que havia prometido, já que você parecia muito assustado para fazer qualquer coisa. Eu procurei minha bolsa térmica, e a encontrei dentro de um dos armários, não dentro do congelador, onde ela deveria estar. Já que era assim, eu peguei algumas pedras de gelo e uma toalha; fiz uma bolsinha térmica improvisada, e voltei ao meu convidado.

— Pronto, coloque aí.

— Juro que não precisa…

— Por favor, por mim.

Você se resignou e se sentou na cama. Gemeu mais um pouco e colocou os pés com as meias em cima da cama, enclausurando-se; se abraçou como se seu pequeno mundo consistisse apenas do que pudesse tocar, do que pudesse envolver com as mãos.

Meu coração se apertou, não parecia certo.

Aproximei-me da cama e me sentei ao seu lado. O peso da cama afundou mais com o segundo corpo na cama, e rangeu ao ato; eu só vi os olhinhos azuis se moverem, atentos a cada movimento meu. Com uma ação muda, pedi permissão para colocar a toalha contra o ferimento; e apesar da desconfiança e de sua insegurança, você abaixou os braços para que eu pudesse cuidar de seu ferimento.

Ainda gemeu um pouco.

— Está tudo bem. — Tentei tranquilizá-lo um pouco. — Vai ficar tudo bem.

— Só você acha isso — retrucou.

Seus olhos eram realmente azuis. Nada de lente. Um azul profundo e límpido, mas que não conseguiam encarar a mesma pessoa por muito tempo. Você desviou o olhar e sua pele enrubesceu nas maçãs do rosto; eu pude contar cada pequena sarda de sua pele. O ferimento acima do supercílio esquerdo era feio, como se tivesse levado um golpe nos olhos. Só que não notei apenas isso. Você tinha um nariz arrebitado, muito adorável, e lábios cheios igual a um querubim.

— Pode deixar que eu seguro — disse, e tocou brevemente sua mão contra a minha; você fechou os olhos por um momento.

O silêncio que se instalou entre nós pareceu mais calmo enquanto você segurava a minha mão. Era como se você precisasse daquilo para se firmar dentro do Universo. Eu apenas fiz meu papel como uma peça de xadrez daquele grande esquema, porque não era de mim que ele precisava. Era de alguma gentileza imóvel, de alguma prova de que ele não fora abandonado pelo Destino.

Às vezes, era tudo que importava.

— Você quer comer algo? — eu ofereci, enfim, quando você parecia finalmente ter voltado a si. Seus olhos azuis se abriram e me encararam de volta. — Posso pedir algo, ou, sei lá… acho que tenho pizza congelada no freezer.

— Não precisa se preocupar… — começou, enquanto eu me afastava, já com meu celular em mãos; e lembrei-me, de repente, do que acontecera com ele na ponte.

É, talvez tivesse visto sua última ligação. A tela estava toda rachada, e apesar de não ter esperanças de que ele ligasse, a luz acendeu, me surpreendendo.

Quem diria que a tecnologia não me deixara na mão.

O touch screen ainda estava um pouco avariado, e certamente me causaria alguns cortes nos dedos se eu não colocasse uma tela de proteção, só que eu não tinha dinheiro algum para consertar aquele estrago. Teria que ficar com aquela porcaria até juntar minhas pobres economias, ou vender alguns desenhos para algum pobre coitado. De qualquer forma, era uma boa notícia que o celular ainda funcionava, mesmo naquele estado lamentável. Eu ainda podia fazer minhas operações de banco, e todos os meus contatos estavam ali. Incluindo… o da pizzaria que eu mais gostava.

— Não se preocupe — eu respondi; sabia muito bem que poderia economizar acendendo o forno e gastando a pizza congelada, mas aquela era uma ocasião especial. Você não se animava comendo comida congelada. Quem mudava de perspectiva com pizza brotinho? O melhor era mesmo pedir uma pizza fresquinha. — Você paga a próxima.

— A próxima…? — você repetiu, um tanto incerto, mas então, um sorriso. — Certo então. Combinado.

Ponto para mim.

Enquanto mexia no celular, apoiado contra o balcão da cozinha, na tentativa de descobrir o quanto ele funcionava e qual pizza pedir — eu tinha o meu pedido preferido, é claro, mas precisava descobrir o seu —; eu o vi se levantar e ir em minha direção, ainda olhava em volta.

Eu não tinha muitas coisas. A cama de casal ocupava metade da sala; e, sinceramente, eu poderia ter uma cama de solteiro apenas pelo fato de que ela não via outra pessoa desde o Grande Dilúvio, mas o problema era que, como muitos dos meus móveis, aquela cama era uma doação do último apartamento de Dave. Aquela fora uma herança que eu recebi de seu quarto, assim como a cômoda colorida blocada de sua infância, que guardava as minhas poucas roupas de qualquer jeito; a maioria dos equipamentos de cozinha vieram com o pequeno apartamento. O resto das decorações, no entanto, eram minhas. Fotos espalhadas, peças de arte, quadros diversos, materiais de desenho. Assim como a maioria dos meus trabalhos da faculdade espalhados de qualquer modo pelo chão. Eu também tinha uma pequena mesa de desenho, mas essa se encontrava desmontada, por ocupar muito espaço. Eu realmente só a armava na hora que precisava.

E no momento…

— O que você acha de uma pizza margherita…

Você estava a centímetros de mim. O que era engraçado, um pouco, dada a nossa diferença de altura. Eu não havia reparado nisso na ponte, quando o tive em meus braços, no entanto, você tinha uns bons trinta centímetros a menos do que eu. Bem, com a minha altura, era de se esperar, já que eu reinava nos céus com meus um metro e noventa e quatro centímetros de altura. Mas você era baixinho, não era?

Será que você era adolescente? Devia ser menor de idade. Céus. Você cheirava a problemas.

Eu realmente devia ter te levado à delegacia…

Você assentiu.

— Será que eu posso tomar um banho?

Acho que aquela foi a primeira frase inteira que ouvi sua. Sem contar os xingamentos.

De novo, o rubor tomou conta de seu rosto, e você apenas desviou o olhar. Eu quis clarear as dúvidas.

— Claro que pode. Eu ofereci pegar uma toalha pra você. Inclusive, pode secar suas roupas na secadora que tem no banheiro… eu ia sugerir isso. Só que acho que pode demorar algum tempo. Quer algumas roupas emprestadas?

Você olhou para a cômoda e apenas assentiu, cruzou o quarto e a cozinha com apenas algumas passadas para chegar até o banheiro. Aparentemente, eu teria de me acostumar com poucas palavras. Terminei de pedir a pizza e deixei meu celular em cima do balcão. Fui até a cômoda e tirei de lá uma toalha felpuda — a melhor que eu tinha, quase de estimação mesmo —, que, felizmente, estava limpa; e um conjunto de roupas que Dave normalmente usava quando passava a noite no meu apartamento. Imaginei que qualquer roupa minha ficasse muito larga em você, já que minha altura era incompatível com a sua, e quando volvi os olhos no dito cujo…

Você já estava em frente à porta do banheiro, e se despia.

Bem, quem estava vermelho agora?

Eu podia jurar que estava da mesma cor que a raiz dos meus cabelos tingidos.

Minha mandíbula levemente se abriu até. Eu não conseguia parar de olhar. Eu era um artista por profissão e por natureza. Apesar de ter várias aulas com modelos vivos e conhecer como era a musculatura humana, era uma coisa completamente diferente observar os bíceps e tríceps daquele espécime em específico, que se despia retirando a jaqueta vermelha e a camisa branca por debaixo; os pectorais major e trapézio contraindo e… 

Bem em seu trapezoide, marcado em tinta, estava uma flor.

Mas eu sabia muito bem qual era sem precisar referenciar o Google ou uma biblioteca.

— Hortênsias — eu disse.

— Ah — você suspirou, e segurou suas roupas em mãos.

Era como um feitiço. Estava bem ali, a tatuagem maldita. Eu queria tocá-la.

Foi quando notei que você estava apenas de cueca, bem no meio da minha cozinha.

O embaraço retornou novamente, e eu praticamente joguei a toalha em cima de você, para cobrir suas vergonhas.

— Aqui! Tome, por favor…

Se fosse possível, eu diria que você ria de mim, mas meu visitante não riria de tamanha tragédia, não é mesmo? De qualquer forma, você foi em direção ao banheiro e fechou a porta atrás de si, e eu ouvi quando ligou a máquina de secar, e o chuveiro logo em seguida. Eu apenas respirei, aliviado, e me joguei na minha cama.

Muitas emoções para se lidar de uma vez. Não estava preparado para ter um rapaz se despindo na minha frente daquele modo. Bem, era como Dave planejara que minha noite fosse terminar, no entanto, aparentemente, eu ainda tinha que preparar meu psicológico para ver outra pessoa nua tão de perto.

Teria você um irmão, ou simplesmente estava acostumado a tirar a roupa com frequência na frente de estranhos?

Eu não sabia.

Apenas… eu tinha visto aquela tatuagem antes, no entanto, você não pareceu me reconhecer.

Não era você meu date no Tinder?


A pizza chegou no instante que você saiu do banheiro.

— Voilá — eu disse, satisfeito.

Paguei o entregador e trouxe a pizza, e sentei-me na cama para aproveitar a delícia. Havia trocado de roupas, e você usava o conjunto improvisado de Dave. Eram apenas uns shorts vermelhos e uma camiseta gráfica de uma banda que nós dois já tínhamos deixado de gostar. O olhar que você dignou à camisa foi cômico.

— Prometo que tenho um gosto melhor agora. — Indiquei que se sentasse na cama, do lado esquerdo.

Eu nunca abdicaria do lado em que eu costumava dormir, nem mesmo para Dave. Nem para você.

— Não estava julgando. — E sorriu.

Aquilo me fez erguer uma sobrancelha. Era o maior número de palavras que você falara na minha presença. De qualquer modo, era bem-vindo. Pelo modo que seus ombros pareciam relaxados, e a maneira despojada com a qual se sentou na cama, com uma perna na cama e outra tocando no chão; você parecia bem mais à vontade no meu pequeno apartamento.

Uma boa notícia.

— Pizza?

Você assentiu, pegou uma fatia com a mão direita, e comeu em um novo silêncio, mas ficamos próximos. Na outra, segurava, com firmeza, o celular. A caixa da pizza aberta nos separava, porém, em poucos momentos, devoramos o conteúdo; e o cheiro delicioso foi substituído por nossos estômagos cheios.

Eu me joguei contra o colchão macio, e observei meu companheiro improvável. Havia algo no modo em como a franja loira caía sobre os olhos azuis, firmes e profundos, a atenção presa no acender e apagar de cada mensagem recebida pelo celular. Mas, ao contrário do que eu esperava, não respondia a nenhuma ligação. Apenas encarava a tela.

— Não vai quebrar se você responder de volta — arrisquei, apoiando a cabeça com uma das mãos, ainda com os olhos centrados nele.

Você pareceu sair de seu estupor, baixou o braço e colocou o celular no colo.

— Às vezes, as pessoas só querem expiar a própria culpa — foi sua resposta, enfim.

— Quer elaborar mais?

Você ficou alguns momentos em silêncio, mas então, balançou a cabeça negativamente.

— Prefiro fazer algo mais interessante…

Havia um ar diferente em seu rosto. Um sorriso. Era isso que eu via de diferente. Era a primeira vez que o via sorrir de canto de boca, um de cafajeste; e droga, lhe caía muito bem. Eu tive que me chutar mentalmente que não o trouxera ali para namorá-lo ou qualquer coisa do tipo. Era só para tirá-lo da chuva. Como um cão abandonado.

Ou um gato.

Você se moveu de quatro sobre a cama e andou em minha direção. Achei que fosse se deitar ao meu lado, mas continuou avançando… e avançando…

Até que seu rosto ficou a centímetros do meu, e suas mãos estavam lado a lado da minha cabeça; eu fiquei sem saber como agir. Não sabia o que aquilo significava, ao menos, não sabia o que eu queria que aquilo significasse.

Abri a boca para falar algo, mas as palavras não saíram. Meus olhos estavam focados em você, Jesse, especificamente em sua boca…

Você fechou os olhos, e eu não percebi quando eu fiz o mesmo.

Seu celular tocou.

Nós abrimos os olhos.

— Tsc — disse quando se afastou, mas não antes de piscar um olho. — Você fica adorável vermelho desse jeito, Alex. — E acariciou minha bochecha levemente, antes de voltar a dar atenção ao celular e encarar o visor.

Quanto a mim… meu coração estava prestes a sair pela boca. Eu nunca tinha sentido algo parecido. Essa animação, esse frio na espinha… essa vontade de sentir a pele do outro na minha. Eu engoli em seco. Quem quer que fosse, você mexia com todos os meus sentidos. Aquela era a primeira pista.

Por outro lado, ao voltar a olhar o celular, seus ombros se tencionaram. Recebera alguma notícia ruim. Ergui meu torso, e fiquei sentado na cama. Dava para ver as lágrimas que ele se recusava a derramar. Você, Jesse, acima de tudo, era orgulhoso. Aquela foi a segunda pista.

— Tudo bem?

Você voltou a me encarar, e eu entendi que não sabia responder aquela pergunta.

Eu cobri a mão que segurava o celular, e a apertei um pouco.

— Vai ficar tudo bem. Vamos dormir. Amanhã é um novo dia.

Tirei o celular de suas mãos, o coloquei ao lado do meu, e os deixei para que carregassem, de forma silenciosa, em cima da cômoda. Seu silêncio perdurou comigo, contudo, eu parecia ter feito algo certo, porque apenas assentiu e murmurou em uma voz baixa:

— Obrigado.


— Vamos mesmo dormir na mesma cama?

— Você vê outra opção por aqui?

Não era como se tivéssemos outra escolha. A outra opção seria um dos dois dormir no chão da cozinha, com algum dos lençóis servindo de colchão improvisado, mas eu tinha uma alma de velho em um corpo de um jovem de vinte e três anos; e você era visita.

Além do mais, era um pedido.

— Não quero me impor…

— Oras, claro que pode. — Eu dei de ombros, e me livrei de qualquer modo da caixa de pizza. Eu ainda iria tirar o lixo para fora, mas já estava tarde, então iria acordar cedo no dia seguinte, antes que o caminhão passasse para tirar todo o lixo da casa. — Você também pode ser mimado um pouco, Jesse.

Eu não percebi o quanto minhas palavras o afetaram, mas o sorriso que deu era verdadeiramente genuíno. Você subiu na cama, se deitou e cobriu-se com as cobertas; eu o segui, e apaguei as luzes em seguida.

Deitei-me de lado, de as costas para ele, para que tivesse mais alguma privacidade, embora não fosse a forma que costumasse dormir, então era desconfortável para mim. O que importava era que você ficasse bem, não era? O silêncio reinou entre nós, e eu esperava que ele tivesse um boa noite de sono. Eu mesmo sofria um pouco de insônia, portanto, encarei os celulares em cima da cômoda.

A tela dele acendia com cada nova mensagem, com cada nova vibração, até que simplesmente apagou por volta das três da manhã.

Acho que desistiu, foi o que pensei. Mas quem mandaria mensagens tão insistentes, quando você mesmo, Jesse, afirmou que não tinha lugar para retornar? Quando falou que não tinha família, ou amigos…

Podia ter brigado com alguém. Claramente tinha brigado com alguém, pelo ferimento no rosto. Talvez tenha sido por isso o motivo do comentário da “consciência pesada”. Eram provas de que acontecera algo com você.

Bem, isso e estar no meio de uma ponte no meio do nada, fazendo Deus sabe o quê…

Decidi perguntar a você quando acordasse na manhã seguinte. Talvez uma conversa mais séria fosse necessária, descobrir o que faria a partir dali. Precisava de acompanhamento sério psicológico, de um médico para ver aquele ferimento no rosto, de uma conversa com a família…

Se tivesse família.

Quando o sono começava a tomar conta de mim, senti duas mãos tocarem minhas costas e puxarem de leve minha camisa. Quase não senti o toque, tão necessitado, tão desesperado, tão quieto…

— Jesse?

Você não disse nada, mas virei meu rosto em sua direção. Você percebeu a minha movimentação e colocou o rosto contra mim, e, finalmente, senti a umidade. Suas lágrimas, um sacrifício para o altar em minhas costas.

— Jesse…

— Não se vire.

Você se agarrou com desespero contra mim, e era um encaixe perfeito com meu corpo. Como se fossemos duas peças de dois quebra-cabeças diferentes, mas feitos da mesma forma. Tínhamos o mesmo formato. Os mesmos problemas.

Apenas não sabíamos daquilo.

— Deixe sair — eu disse, ainda não ousava me mexer. — Deixe tudo sair.

E você apenas chorou. Não disse uma palavra, não soltou um som. Apenas o choro gutural de sentimentos presos no peito, de uma vida inteira de não os expressar.

Por fim, não foi a tristeza que o alcançou, e sim o cansaço. Quando finalmente dormiu, eu ainda demorei algum tempo observando suas feições e com pensamentos diversos. Memórias. Estava prestes a me afogar nelas quando o sono me atingiu.

Até mesmo o deus do sono era gentil.

Quando acordei, os lençóis estavam revirados, porém, eu me senti estranhamente com frio. Estava com preguiça de abrir os olhos, mesmo assim, precisava me levantar, para jogar o lixo do lado de fora; e foi então que percebi…

Estava sozinho na cama.

Ergui-me de repente, no susto. Olhei ao redor, e como o apartamento era pequeno, foi fácil constatar a verdade que me assombrava:

Você foi embora.

capítulo 4

joia falsa

— E ele simplesmente sumiu?

— Foi. Como um fantasma.

O copo em minhas mãos fez um barulho estranho, indicando que eu havia terminado meu frappuccino de caramelo, enquanto Dave ainda aquecia as mãos enluvadas no seu mocca. Estávamos naquela cafeteria há vários minutos, e eu escolhi aquele momento para contar tudo sobre meu “encontro quente” da noite anterior.

Claro, Dave devorou cada detalhe como as migalhas do croissant que comprei para ele.

— Jesus. — Foi seu veredito final. — Eu te arranjo um date, e você me volta amaldiçoado, Alex.

Dave Collins era meu melhor amigo, ou algo parecido. O mais próximo que você poderia chegar disso quando se tratava de minha pessoa. Eu o conheci quando ele ainda usava fraldas — bem, um pequeno exagero. Ele tinha seis ou sete anos, e estava prestes a começar a escola nova. Ele era meu vizinho chato e insuportável que queria se juntar ao grupo de meninos mais velhos, que incluíam eu e Iza, meu primeiro namorado e má influência preferida. Ele sempre nos seguia apesar dos sapatos afivelados e saias rodadas de babados, enquanto meu uniforme era completamente alternativo. Mas a mãe dele pagava bem quando ela tinha que dar plantão no trabalho, então eu fingia suportá-lo até finalmente gostar dele.

É tudo sua culpa,

o sangue pingando de minhas mãos

as lágrimas naquele olhar

e era, era, era

Senti um arrepio na espinha só de me recordar daquilo. Quando eu olhava para Dave, todas as memórias vinham, sempre. Era uma culpa que eu não conseguia expiar.

Talvez Deus tivesse me amaldiçoado desde aquele dia.

— Bem, eu, de fato, dormi com alguém.

— Mas só dormir não conta. Você está sendo literal para distorcer os fatos.

— Não fiz o que você pediu na aposta? Cumpri todos os termos. “Aceitei um encontro quente e dormi com um rapaz”. Mais sorte no Mario Kart da próxima vez.

Dave fez um muxoxo, e sorveu mais do mocca. Ele ficava realmente adorável quando contrariado; e, por Céus, era uma das coisas que eu achava mais divertida de fazer: antagonizá-lo. Dave era três anos mais novo que eu, e ele tinha os olhos amendoados cor de mel, com a expressão de cachorro abandonado mais fofa que eu já tinha visto. Lógico, isso sempre amolecia meu coração duro e frio como gelo, mas não naquele dia.

Naquele dia, eu era vitorioso naquela nossa aposta.

Mesmo de uma forma estranha e especialmente esquisita.

— Eu diria que você estaria mentindo para mim se não fosse uma história completamente fantástica e inacreditável — ele disse, por fim.

O vi remexer no celular e olhar pelo visor da câmera frontal, checando a franja tingida de púrpura, assim como todo o cabelo.

Eu sabia que aquilo não era um sinal de vaidade, porém. Dave era a última pessoa a ser vaidosa. Quando estava assim, era porque…

— Nunca iria mentir pra você, e você sabe disso. — Dei meu melhor sorriso para ele, para tentar mudar de assunto.

Ele parou de encarar o celular, e virou o visor para baixo. E sorriu. Bom. Aquilo era um ótimo sinal.

— Bem, saiba que nossa aposta ainda está de pé. Você ainda tem que sair em um encontro com alguém.

— Ei!

— Mas sabe… — Ele colocou a mão no queixo, e afagou sua barba imaginária. Eu apenas ri. Dave não tomava hormônios a tempo suficiente para crescer barba. — É como o roteiro de um livro, sabe?

— Como assim?

— Vocês na chuva, um encontro…

— Está mais para um agarro.

— Que seja. Um encontro do Destino, eu colocaria assim. Como almas gêmeas destinadas a se encontrarem, akai ito. Sei lá. Meio romântico.

Eu dei de ombros. Por alguma razão, aquelas palavras me pareciam muito além do escopo.

— Eu só achei que ele precisava de alguém. Poderia ser qualquer pessoa. Poderia ser você, no meu lugar, indo a um encontro quente.

Dave pareceu refletir.

— Mas foi você, Alex. É o que importa.

O que eu podia fazer?

Eu suspirei.

— Bem, destino ou não, não irei procurar mais trabalho do que já tenho agora. — E apontei para Dave, que apenas sorriu, parecendo um pouco culpado. — Deixarei ao acaso.

— Bem, você tem um nome e um rosto. É a época das mídias sociais. Encontrá-lo não seria tãaaao difícil assim.

— Acaso, Dave. Se for para ser, assim será. Se era mesmo para nos encontrarmos, se os nossos Destinos estavam traçados no mesmo tear da Vida; tenho certeza de que nos encontraremos novamente.

Dave pigarreou, rindo.

— Você é mesmo um romântico incorrigível. Tudo bem, mas espero não ser um fantasma.

Minha gargalhada ecoou pela cafeteria, e alguns alunos me encararam; sua paz perturbada pela minha inconveniência, portanto, eu era um estranho chato.

Eu não me importava de chamar a atenção. Era o que quase dois metros de altura, uma tatuagem no rosto e cabelos pintados de vermelho vivo desde os treze anos faziam a você. Eu era uma criança problema desde que me entendia por gente. Podia não ter muitas amizades, e tinha mania de afastar a todos, com exceção de Dave; e era melhor assim, porém, a atitude permanecia. Eu não me importava com as pessoas.

Dave, no entanto, se importava e muito com o que os outros pensavam. Como era mais novo do que eu, lógico que admirava a minha estética e me adorava, mas… ele não tinha a minha autoconfiança. Ou como chamava, o meu poder de mandar as outras pessoas se foderem. Ele ainda se escondia atrás de moletons maiores que seu tamanho, e mangas que se estendiam além dos seus dedos; fingia mexer no celular a maior parte do tempo, e, quando as mãos não estavam grudadas no aparelho, seguravam firmemente as alças da mochila púrpura, igual ao cabelo, da qual não se separava nunca.

Comparado a Dave, você era menos tangível. Mesmo assim…

— Espero que não tenha sido um fantasma. Eu me lembro bem do seu toque.

As sobrancelhas de Dave se ergueram e quase se juntaram ante aquela nova informação.

— Alex Morris, você não me disse que “tocou” ele.

Bem, acho que dei detalhes demais. Peguei meu celular para tentar disfarçar.

— Olha a hora. Acho que tenho que levar você pra a sua aula. — E comecei a me levantar. Peguei a minha mochila e o copo vazio, e fui em direção ao lixo comunal para descartá-lo.

— Alex Morris! Volte aqui e me conte essa história direito!

— Dave Collins, hora de sofrer junto com seus coleguinhas do curso de Escrita Criativa!

Dave chegou ao meu lado, ainda segurava seu mocca quando peguei em sua mão. Era apenas um hábito, porém, pela temperatura fria das mãos de Dave, eu sabia que ele precisava. Ele segurou firme contra mim, e seguimos até o prédio em que sua aula era localizada, em silêncio.

Eu sabia que, quando ele ficava assim, era porque mil pensamentos passavam por sua mente; eu tentava mudar de assunto, tentava estimulá-lo, como sua psiquiatra sugeriu anteriormente, mas Dave continuava em silêncio logo em seguida; então eu fiquei calado também. Não queria forçar nada. Só de tê-lo ali, ao meu lado, era o suficiente.

Naquela época, eu não sabia de nada.

— Chegamos — eu anunciei.

Eu sabia onde eram suas aulas. Se eu sabia onde eram todas as minhas aulas? Claro que não. Era quase o final do semestre, e eu ainda precisava checar o portal do aluno para andar por aí. Só com Dave eu tinha uma atenção especial.

— Está pronto?

Ele parou em frente à porta. Estávamos um pouco afastados, portanto, pude observar um pouco do grupo de seus colegas. Eu os conhecia mais ou menos, Dave falara um pouco sobre eles. Ele os observava, mas não fez amizade com ninguém até então.

Isso era outro problema que eu evitava pensar.

— Eu acho que sim. — Ele assentiu, e olhou no celular de novo para ver sua aparência. — Estou bonito?

Eu sabia que ele perguntava aquilo apenas por ansiedade, mas eu não diminuiria seu ego apenas por brincadeira. Apertei o nariz dele e disse:

— Você é a pessoa mais bela que eu conheço.

Ele riu.

— Pare de puxar meu saco, Alex. Eu nem tenho um.

Levei minha mão para seus fios arroxeados e arrumei-os mais ainda, como uma mãe faria. Kate ficaria orgulhosa de mim. Ao menos, ela admirava o modo como eu cuidava do filho dela. Ela gostava de dividir aquele fardo, já que era uma mãe solo, e o filho era um poço de problemas. Bem, Dave era uma gracinha.

— Vai dar tudo certo. Eu te espero depois da minha aula. Você sabe onde é?

— Eu sei. — Ele fez um muxoxo, e arrumou o próprio cabelo. — Você sabe onde é?

Eu apontei para a enorme pasta de desenho que carregava.

— A única aula que vale a pena. Anatomia.

— Aaah, ver gente nua. Acho que você realmente está precisando disso.

— Não depois de ontem à noite.

Dave fez outro muxoxo.

— Você realmente está omitindo muitos detalhes do que aconteceu. Prometa que vai me contar tudo depois da aula!

Eu apontei em direção a uma pessoa que vinha pelo corredor, e dei alguns passos para trás.

— Olha, aquele não é seu professor? Entra logo na sala, antes que você não possa mais entrar… Estou atrasado para a minha aula!

Ele lançou um olhar para a pessoa, e simplesmente desistiu; no entanto, não antes de dizer:

— Você está sempre atrasado, Alex.

O que era uma verdade inegável, mas ao menos eu sabia o caminho para aquela aula em específico. Era do outro lado da faculdade, quase um universo de distância para que eu atravessasse; mesmo assim, eu o fazia de bom grado. Era meu dever fazer com que Dave chegasse às aulas bem e em segurança. Ao menos, foi essa a tarefa que eu mesmo me dei. Fazia tanto tempo que não conhecia diferente.

Meus pensamentos me ocuparam por todo o caminho até a sala de desenho número nove. Eu não sabia o motivo dela ser numerada daquela maneira, já que não havia nove salas de desenho naquela universidade, mas aquela era especial. Por quê? Aquela era a única sala com o mínimo de aquecimento decente. E aquilo importava muito na aula em questão, especialmente com o frio de novembro que ameaçava a tornar-se inverno. Em breve, todo aquele campo em que eu atravessava seria tomado pela neve branca, e seria muito mais difícil a travessia. Mas a beleza da neve, das geadas, e do ar frio não me escapavam. Eu amava o inverno, apesar da primavera ser a minha estação preferida. Era a expectativa de uma época mais doce estar lhe esperando na esquina.

Eu cheguei ao prédio, e algumas pessoas fumavam na entrada. A urgência me atingiu, porém, me contive. Já estava muito atrasado, e abrir a carteira nunca era apenas para um ou dois cigarros. A ansiedade os consumia com voracidade.

E eu simplesmente queria chegar logo.

Queria voltar para Dave, e garantir que estivesse bem. Quando não estávamos juntos, era um fator preocupante em minha mente, em horríveis espirais. Não era exatamente saudável, mas, mesmo assim…

Eu abri a porta e entrei com a cabeça baixa, esperava que o professor não me notasse. Difícil quando você era quase maior do que a própria porta.

— Morris, bom que você se juntou a nós; pegue um cavalo e vá desenhar.

— Certo…

Tirei meu casaco quando o ar quente me atingiu, já que minha furtividade falhou; mas assim que coloquei os olhos no modelo vivo, eu parei.

Eu já dissertei bastante sobre primeiros encontros, não foi? O que falar então de segundos olhares, especialmente quando a pessoa em questão estava nua em pelo em um palco? Não era uma situação estranha, dada a natureza da aula. Só que o modelo vivo era você, Jesse, e estava plenamente concentrado; olhava em linha reta, sentado em cima do tecido vagabundo que a faculdade providenciava aos modelos, e parecia, em geral, desconfortável.

Podia ser qualquer pessoa ali. Eu tinha certeza de que era o “meu” Jesse por três motivos: o ferimento no rosto, que continuava roxo e parecia um pouco pior na luz intensa do palco; a tatuagem de hortênsias em suas costas; e, derradeiramente, o modo como me encarou ao me ver entrar na sala.

É, você me reconhecia.

Prontamente voltou a encarar o nada, e ficou na pose original.

— Morris, vai ficar igual a peixe morto aí? Vá se arrumar!

Murmurei uma desculpa apressada, e fui em direção ao montante de madeira e peguei um suporte; deixei minhas coisas em cima de uma das cadeiras pretas apressadamente, com o coração subitamente acelerado. Como eu deveria agir? Era mesmo você ali em cima do palco? Dirigi um esgar de volta, espiando. Era mesmo você. Não era um sonho. Belisquei-me apenas para garantir.

Olhei de novo.

Agora eu tinha um problema.

Como ia ser capaz de continuar com a aula e desenhar seu corpo nu?!


um pequeno interlúdio

Naquela época, não parecia nada. 

Naquela época, parecia Destino. 


Meu impasse foi resolvido pelo professor, que, novamente, me chamou a atenção, e eu me instalei no fundo da sala, mas eu não desenhei. Tentei ocupar a maior parte das páginas com alguns exercícios de alongamentos. Nunca desenhei tantos círculos. Fiz linhas, curvas, jogos da velha.

Tudo para evitar de olhar o pecado à minha frente.

Você parecia fazer de propósito. Todas as suas poses pareciam sensuais. Quase o detestei imediatamente. Tentava ao máximo não olhar, mas era quase impossível. Uma tarefa hercúlea. Era como se todo o meu ser fosse atraído, e tentei meu máximo me comportar para não sair e perguntar a ele como ele estava.

Droga, eu tinha passado a noite com você! Tinha chorado nas minhas costas!

Queria saber o motivo de ter saído de fininho, sem falar nada. Agora, vários motivos me vinham à mente: poderia ter trabalho mais cedo, não é? Aquela podia não ser sua primeira aula. Eu não sabia qual era o cronograma de aulas da universidade (francamente, eu mal acompanhava o cronograma do meu próprio curso), no entanto, não devia ser modelo apenas para aquela aula em específico. Era um milagre ter aparecido apenas àquela altura do curso em andamento. Estávamos em novembro. Era mais da metade do semestre.

Seria uma coincidência muito fodida…

Ou o Acaso? Parecia que eu o tinha invocado.

De qualquer forma, eu senti o chute da bunda do Destino. Suspirei e me dei por vencido. Eu havia jogado com a Sorte, não era? Havia dito aquilo, e não podia voltar atrás. O que quer que acontecesse daqui para frente, seria sua escolha, Jesse, e que eu fosse levado por aquela correnteza.

Levantei meus olhos por um momento, em um breve intervalo entre as poses, e mandei uma mensagem para Dave.

Alex: Você não vai acreditar no que acabou de acontecer.

Quando o intervalo acabou, voltei a desenhar, mas não me concentrei nem um pouco no que era passado na aula. Ao invés disso, me concentrei nas suas formas, Jesse, e nas memórias da noite anterior. Meu carvão passeou preguiçosamente sobre o papel, desenhando, traçando, um músculo ali, nos seus bíceps avantajados, a tatuagem enigmática de hortênsias, os olhos marcantes…

Nos encaramos.

— Ah… — eu quis dizer algo.

Era como se houvesse apenas nós dois na sala, e não uma turma inteira de vinte e seis alunos, meus colegas do curso de Ilustração. Quando você me encarou, eu soube que…

Um som alto irrompeu, e eu percebi que estava perdido quando suas sobrancelhas se abaixaram, incomodado. Era meu toque, e eu sabia que era o meu, porque havia selecionado aquela música em especial apenas para uma pessoa.

Dave.

Merda.

— Alô? Dave, o que aconteceu? — Atender ao telefone foi algo automático.

Eu precisava atender. A ansiedade subiu como uma flecha à boca do meu estômago, e eu o senti revirar. O que aconteceu? Por que ele me ligou? O que era tão urgente para ele me ligar no meio das nossas aulas?

— Ei! — Ouvi a sua voz pela primeira vez naquele dia. — Sem telefones!

— Morris, você sabe disso. Não pode usar telefones durante a aula enquanto o modelo está nu — meu professor, o sr. Harris, ralhou. Ele era um homem sério, careca, mas muito bondoso. Para ralhar conosco era necessário muito para tirar-lhe do sério. — Vá atender lá fora.

— Desculpe — murmurei, e corri porta afora.

Apenas ouvia a voz assustada de Dave do outro lado da linha, sem compreender direito o que ele me falava. Assim que consegui um lugar silencioso, longe das pessoas, repeti minha pergunta.

— Dave, o que aconteceu?

A voz dele saiu baixa e um pouco áspera, porém, audível o suficiente para que minha preocupação pudesse se aquietar um pouco.

— No que eu não vou acreditar?

Eu suspirei.

— Dave…

— Ah, você atiçou a minha curiosidade. Vamos lá, estou esperando!

— Você não está em aula?

Ouvi o silêncio vindo do microfone, e eu soube que tinha atingido em cheio. Sentimentos que eu conhecia muito bem o nome, mas que eu frequentemente enfiava de qualquer jeito dentro de uma caixinha dentro de mim, para não lidar com eles, ameaçaram aflorar. A caixa de litígio sendo aberta.

Eu não podia lidar com aquilo agora.

— Ah, Dave… — suspirei.

O que eu iria fazer? O certo era ir até ele, mas eu ainda queria falar com você, Jesse. Eu não queria largar tudo e ir até meu amigo. Sem falar que eu não podia faltar muito mais aulas. Eu já estava na mira dos meus professores para cortarem a minha bolsa. Tinha de manter o bom exemplo. Só que…

— Quer que eu vá pra aí?

— Não… — A voz dele saiu baixa. Eu sabia que ele não estava bem. Aquilo me angustiou. Droga. Não havia notado os sinais de novo. Merda. — Eu tô bem. Sério. Termine sua aula, depois conversamos.

— Mesmo?

— Sim. Quero aproveitar a brisa de outono. — Ele riu.

— Se você diz… vou indo, e te encontro logo depois. Mais rápido que um meteoro.

— Obrigado.

E ele desligou a ligação, me deixando ali, sem chão.

O que eu poderia fazer?

O que eu devia fazer?

Eram duas perguntas cujas respostas nunca teria.


Voltei para a sala, e fiquei em silêncio o resto do tempo, esperando. Estava claro que você não mais iria me dirigir o olhar; e pelo modo como me ignorava, estava determinado a sair correndo dali quando a aula se findasse.

Era uma pena que eu estivesse pronto para acabar com seus planos.

Esperei para dar o bote quando o alarme soou. Meus colegas começaram a arrumar as coisas, e a conversa rolava solta. Eu vi o professor responder a dúvida de alguns alunos e arrumar seus materiais para sair, enquanto eu vestia meu casaco e fingia estar muito interessado no meu celular. Em realidade, meu olhar ia de esguelha para a figura solitária no palanque, que se levantou, ainda nua, foi em direção a um pequeno amontoado de roupas em uma cadeira preta de armar, e as pegou; parecia distraído. Reconheci a jaqueta vermelha do dia anterior, assim como algumas das roupas. Quando você foi embora na noite anterior, deixou as roupas que eu emprestara arrumadas em cima da cômoda, o que provava que eu não tive uma alucinação.

Nem que você era um fantasma.

Cada vez mais você se tornava tangível, próximo de mim.

Meu coração batia forte, como se eu fosse fazer alguma travessura. Mas era um plano muito arriscado, porque eu não sabia qual seria sua reação; eu apenas queria…

O que eu queria?

Eu não sabia.

Porém, eu era apenas uma peça naquele xadrez do Destino, então iria agir de acordo.

Esperei o professor ir embora, assim como o restante dos meus colegas. Apenas você permaneceu, colocava sua roupa, e a jaqueta vermelha por cima de tudo. Céus. E pensar que eu havia visto tudo…

Tentei não focar nisso.

(Ao menos, não naquele momento. Eu tinha alguns blocos de desenho em casa afinal. Ficaria inspirado por dias.)

— Jesse?

Ao ouvir o som do seu nome, você se virou, assustado. Os olhos azuis se arregalaram ao me reconhecer, porém, não havia nada do garoto assustado da noite anterior. Ao contrário, lá estava a mesma fera ferida que eu encontrara na ponte. As garras prontas para atacar.

— O que você quer?

Bem, hora de rolar por carisma.

— Você está melhor?

Você olhou para mim, como se não soubesse o que responder. Era uma pergunta muito carregada de significados, então não a respondeu diretamente.

— Você disse que não se importava.

É, aquilo era verdade. Ou ao menos, eu tentava.

— Bem, você saiu da minha casa sem falar nada…

— Você preferia que eu ficasse?

Não que eu esperasse um café da manhã regado com mais silêncios, mas eu realmente não sabia o que esperar. Eu só… não sei. Eu não sabia o que fazer em relação a tudo. Eu queria fazer muito mais por você.

Se me permitisse.

— Eu tinha outra aula antes dessa. — Deu de ombros. — Não é da sua conta pra onde eu vou ou deixo de ir.

— Isso é verdade. — Eu cocei a cabeça, e embaracei ainda mais meus fios vermelhos. — Mas… talvez eu gostaria que fosse.

Você se virou e ergueu uma sobrancelha, porém, parecia decidido a não me dar ouvidos. Terminou de calçar os tênis xadrez e deu meia volta por mim; eu o segurei pelo braço.

— Olha, possa ser que eu esteja me intrometendo demais… — comecei, meu tom um pouco desesperado. — Eu só queria saber se você estava melhor.

— Estou. Pode me largar.

Fiz como foi dito, mas você parou para me ouvir. Era uma chance.

Eu não ia desperdiçá-la.

— Olhe, eu acho que começamos com um pé esquerdo. Eu apenas queria pedir desculpas pelo que aconteceu na aula, pra começar.

Ele suspirou.

— Seu nome é Alex, não é?

— Sim.

— Alex, não sou um projeto de caridade.

Como era orgulhoso.

— Eu sei, eu sei. Deixe-me explicar melhor… eu não sei pelo que você tá passando, quais problemas tá enfrentando. — Apontei para o ferimento no rosto, o qual você levou a mão instintivamente. — Eu só sei que, às vezes, uma pessoa precisa de um refúgio para ir de vez em quando.

Você ficou em silêncio.

— Eu só queria dizer que, ao invés de ir para aquela ponte, você pode me ligar, a qualquer hora do dia ou da noite. Eu vou atender.

Estendi um fragmento de papel, no qual havia, apressadamente, anotado meu número de telefone.

Você não o pegou. Apenas o encarou, como se fosse algo profano.

— Você não pode fazer esse tipo de promessa.

— Eu normalmente cumpro as promessas que faço. Palavra de escoteiro. — Pisquei, divertido.

— Não posso aceitar isso — disse, incerto. Seus olhos não deixavam o papel, mas ele não se virou para pegá-lo.

— Bem, vou deixar aqui em cima da mesa — eu arrisquei, e o coloquei em cima da mesa do professor, bem visível para ambos. — Se você vai levar, ou se alguém vai jogar fora, vamos deixar a seu encargo. Apenas… não fique sozinho, Jesse.

De novo aquele silêncio, porém, eu fiz a minha tentativa. Estava na hora de ir.

Alguém precisava de mim também.

— Preciso ir. Espero, de coração, que você fique bem, Jesse.

E o deixei ali, naquela sala aquecida, e parti em direção à minha função principal.

Não foi difícil achar Dave. Nunca era. Era só procurar um local com árvores, ou o local com o menor número de pessoas. Achei-o em um canto da praça principal, escondido entre os arbustos, nas mãos, uma caneta enquanto escrevia em frenesi; quando me viu, levantou a cabeça apenas o suficiente para que eu visse que chorava.

Ah, Dave.

Ele havia melhorado tanto. Mas…

— Dave… — murmurei, e apenas me sentei ao seu lado na mureta, compreendendo tudo. Eu não fazia perguntas.

Apenas o abracei, e deixei que despejasse seus sentimentos em mim.

Amanhã seria melhor, eu esperava.

Eu rezava.


interlúdio

Era quase impossível enxergar no escuro, mas, à meia luz, seus cabelos refletiam os raios dourados que vinham da janela acima da geladeira, enquanto sua respiração rítmica era tudo que eu ouvia, além da minha própria voz. Nada mais restava naquele apartamento. Não havia mais materiais de arte, projetos inacabados, nem o banquinho que um dia me sentei para desenhá-lo.

Só eu e você.

— Jesse — falei seu nome, como se quisesse agarrá-lo, como se dizer seu nome pudesse, de alguma forma, torná-lo tangível.

Não me atrevia a tocá-lo. Sua imagem era pálida, como se eu visse, de fato, um fantasma à minha frente; fruto saído de meus pesadelos mais profundos, e, no limiar da minha consciência, eu queria saber.

— O que você viu na ponte naquele dia? O que o fez subir no parapeito, no meio da chuva, com nada para se segurar?

Achei que receberia apenas o silêncio como resposta, com seus olhos azuis inexpressivos me encarando de volta; mas sua voz, como eu me lembrava, falou:

— Eu vi uma luz. Um alien. Sei lá. Foi tudo, e foi nada.

— Você sempre esteve buscando coisas inalcançáveis.

Você sorriu, no entanto, não de verdade.

Eu me levantei e acendi outro cigarro.

E o vento que saiu de seus lábios veio misturado de meus pensamentos, suas verdades, e palavras nunca ditas.

Eu era uma supernova.

Uma estrela que um dia brilhou nos céus, mandando sua luz para toda a galáxia; e, agora, depois de uma explosão, aos poucos se transformava e consumia tudo ao seu redor.

E levaria todos comigo no processo.

Uma merda de supernova.

Para piorar, o dia estava congelante, o ônibus lotado, então a volta para casa foi mais torturante que o costume. Não que eu tivesse opções. Kurt tinha decidido me ignorar até aquele momento; e eu estava puto com ele o suficiente para não aparecer em sua casa sem aviso, portanto, precisava voltar para algum lugar. Com sorte, Chase não estaria em casa. Meu irmão era popular. Ele tinha lugares a ir, pessoas para ver. Não-namorados para foder.

Ele não me esperaria em casa.

Eu nem me preocupava com a possibilidade de Nama estar lá. Seu cronograma de trabalho era tão fodido, por ser uma enfermeira trabalhando em um hospital público, que raramente a via. Honestamente, era uma benção. Estar em sua presença era um martírio que preferia evitar. Podia simplesmente me esgueirar pela porta da frente, e, quando tinha o azar de sua presença em casa, pular da janela do segundo andar onde ficava meu quarto. Não seria a primeira vez que escapava desse modo, nem seria a última. Não que considerasse a casa onde minha mãe e meu irmão moravam meu lar.

Mas eu já não poderia voltar mais para o número doze das ruas da Margaridas.

Não depois daquilo.

Suspirei.

Eu estava fedendo também. Trabalhar três dias seguidos, sem tomar um banho decente, e, principalmente, depois de uma foda com um estranho, não eram as circunstâncias mais ideais. Claro que eu não poderia ter previsto que toda a merda ia atingir o ventilador desta maneira, mas…

Olhei pelo vidro do ônibus. Ah, eu tinha tomado banho na casa do tal Alex, não era? Alex Morris. Carinha interessante. Bonito. Meu tipo, com certeza. Só que… não estava interessado em mim, mesmo com todo aquele discurso para me dar seu telefone. O papelzinho queimava dentro do bolso da minha calça; e eu, acima de tudo, tentava ignorá-lo. Dizia a mim mesmo que só o pegara para não deixar lixo em cima da mesa de trabalho. Que o jogaria fora assim que chegasse em casa. Melhor, colocaria fogo nele.

Só assim teria paz.

— Rua das Margaridas — a voz eletrônica anunciou, e eu acionei o botão de parada, e me ergui para sair do ônibus.

Passei por várias pessoas no caminho, e desci. O ar frio de novembro me abraçou, e despejei meu desespero nele.

Eu não queria voltar para aquela casa.

Mas que escolha tinha?

Caminhei devagar tentando pensar. Escolhia as palavras com cuidado, repassava cenários em mente. As possibilidades que aconteceriam assim que eu girasse a chave e viesse me encontrar com meu irmão. A verdade é que a briga estava muito enevoada nas minhas memórias. Eu mal me lembrava do que eu havia dito ou deixado de dizer, porque eu havia bebido, e muito. Mas sabia que havia magoado meu irmão, da pior maneira que eu poderia tê-lo magoado. Não poderia ir e consertar aquilo.

É difícil “destirar” alguém do armário.

— Merda…

Ainda parei alguns minutos na frente da casa. Imponente. Anos quarenta. Imperial. A típica casa dos sonhos perfeitos, com cerca branca e tudo. Um dia, fora de meus pais, antes do divórcio, antes do desastre completo. Um casamento perfeito, dois filhos gêmeos, um cachorro ou um gato. Netos. Este era o futuro com o qual Nama Bennett sempre sonhou.

Bem, olha só o que ela conseguiu.

Uma supernova prestes a explodir.

Girei as chaves mais uma vez nas mãos antes de dizer:

— Foda-se.

E abri a porta mesmo assim.

O calor e o silêncio me receberam. Pensei que teria paz, que conseguiria ir para o meu quarto tranquilamente, quando notei a figura no sofá da sala, que me pegou. Um xingamento escapou da minha boca ao mesmo tempo que meu nome saía dos lábios dele:

— Jesse.

— Merda, Chase. Que susto.

— Precisamos conversar.

Estava aí a frase que eu mais temia ouvir. Teria ele esperado a manhã e começo da tarde inteira até que eu chegasse em casa? Ele não conhecia a minha rotina de trabalhos, visto que eu recebia meu cronograma semanalmente; e eu não anunciava para ninguém em casa para onde eu ia nem o que iria fazer. Eu tentava ser o mais livre e desimpedido possível.

Aparentemente, isso não impedia o meu irmão gêmeo de querer saber onde eu estava.

— Achei que você não queria mais falar comigo. — Bem, eu faria de tudo para escapar daquela “conversa”.

Não estava pronto. Achei que estava, porém, só de falar aquela frase, sentimentos se embolaram em minha garganta, como se uma pedra a travasse, e me senti pronto para vomitar. Tirei meus sapatos e, com eles em mãos, tentei correr escada acima, passando com estrondos pelos retratos de família, que minha mãe insistia em pendurar, e eles insistiam em cair conforme passávamos pelas escadas.

(Não havia ele nas fotos).

— Eu sei o que eu disse, por que você tem que ser sempre assim?

Chase parecia decidido, no entanto, porque se levantou de supetão do sofá e foi em minha direção. Não subiu as escadas, ficou no andar de baixo e me olhava dos pés a cabeça.

— Você não precisa fazer isso. — Eu fui categórico.

— Claro que preciso. E você sabe o porquê?

Eu não queria saber.

eu queria

— Porque, no fim, você é meu irmão. E eu te amo. Eu ainda não consigo te perdoar pelo que você fez, porque me magoou muito. Talvez, no futuro, eu consiga. Acho… tentarei me esforçar pra isso.

Encarava o corredor escuro do segundo andar, mas aquelas palavras me trouxeram lágrimas aos olhos. Eu fazia o máximo de esforço para não chorar na frente de Nama ou de Chase, porém, ter uma réstia de perdão, ou uma possibilidade, me animou.

Eu não podia errar mais.

— Desculpe-me, Chase — eu pedi, baixinho.

— Se você quiser conversar mais sobre o que aconteceu… — Chase ofereceu sua mão.

Porém, eu não podia. As palavras estavam emboladas. Todas juntas. Todas presas.

Não podiam sair.

— Se estiver tudo bem com você, eu prefiro ir para o meu quarto. Eu preciso resolver algo.

Chase baixou o olhar, mas sorriu.

Ele sempre sorria.

— Claro, claro. Fique bem, Jesse. Foi mal o soco. Não devia ter me exaltado, mas…

você mereceu

Ele apontou para o próprio olho, sabia que eu era seu reflexo quebrado.

— Tá.

Aquilo encerrava o assunto, e corri de volta para meu quarto.


Meu quarto era o meu refúgio. O local onde as supernovas nasciam. Um pequeno universo em miniatura; e, no escuro, não havia estrelas brilhantes ou galáxias que se desfaziam. Era apenas eu e meus pensamentos cíclicos. Meu próprio buraco negro.

E como me desintegrava a cada palavra não dita.

Não acendi as luzes. Ainda estava com uma réstia de luz vinda da janela, mas como era novembro, eu sabia que iria anoitecer em breve. Eu não me importava. Eu queria a escuridão. Era bem-vinda. Já estava em meu interior, poderia muito bem vir visitar meu exterior também.

Deixei o conteúdo dos meus bolsos em cima da minha cômoda, o que incluía meu celular, minha carteira e minhas chaves. Comecei a tirar a minha roupa e decidi que um banho estava em ordem, mas não agora. Estava sem forças. Joguei-me na cama e fechei os olhos contra o travesseiro.

Eu queria morrer.

Aquele pensamento era recorrente, e não tinha lugar algum para ir. Eu queria morrer, mas não me esforçava para viver, ou sequer me matar. Existia em um limbo, um dia de cada vez.

Na realidade, o que eu mais desejava era não existir.

Será que tinha algum botão no universo para criar um buraco negro bem ali, que apagasse a minha existência do espaço-tempo? Desse modo, eu não atrapalharia as pessoas ao meu redor. Não seria mais um fardo, ou, ao menos, seria apenas uma despesa financeira por uma última vez. Deixar de ser um problema pelo qual as pessoas falavam pelas costas.

Eu só queria desaparecer.

Não sei estimar quanto tempo fiquei ali. Apenas vi as horas passarem, olhando o teto; o dia virar noite.

No escuro, uma estrela se acendeu.

Meu celular.

Devia ser mensagem de Kurt…

Ergui a mão o suficiente para pegar o celular da cômoda, mas algo caiu em frente aos meus olhos. Não apenas algo — um pequeno pedaço de papel. O maldito papel com o número de Alex Morris.

Eu ia jogá-lo fora, não é mesmo? Não ia ter mais contato com ele. Não iria arrastá-lo também para o vórtex que era a minha vida. Ele parecia ser gentil. Importava-se demais com as pessoas, apesar de declarar diversas vezes o contrário.

Só que…

Ele falou que eu podia mandar mensagem, não é?

Jesse: Ei.

Você disse que eu podia mandar mensagem a qualquer hora.

É o Jesse.

Me senti estúpido ao enviar, porque era, acima de tudo, uma mensagem estúpida. Ele nunca veria aquilo. Sem falar que era uma frase vazia. Promessas vazias. Revirei os olhos, e recoloquei o celular em cima da cômoda.

O celular acendeu de novo.

Peguei-o como se fosse um bálsamo.

Alex: E aí. Como está, Jesse?

Bem, ele poderia melhorar a cantada dele.

Jesse: Poderia estar melhor 😉

Alex: Pois é, o tempo está horrível.

Jesse: ????

Alex: Achei que quisesse se concentrar em outra coisa. Estou errado?

Ponto para ele.

Jesse: Você está certo.

Alex: Estou à disposição.

Encontrei-me sorrindo pela primeira vez naquele dia. Quem diria que Alex Morris teria aquele efeito em mim. Era bonitinho, sim, pela foto de perfil. Talvez…

Alex: Ei, você quer sair qualquer dia desses? Acho que começamos errado, e eu quero te ver fora da faculdade. Quer sair pra tomar um café?

Considerei bastante aquele pedido. Talvez fosse errado me envolver com ele, talvez fosse o que eu precisasse. Talvez eu simplesmente estivesse de saco cheio. Talvez…

talvez eu quisesse viver, afinal.

Jesse: Estou livre na Sexta.

capítulo 5

flutue

Sexta-feira chegou, enfim. E meu estômago deu várias voltas; pensava e repensava se eu tinha tomado a decisão certa em mandar mensagem para o tal de Alex. Porque não foi somente uma mensagem aleatória.

Foram várias.

A madrugada se tornou dia aos poucos enquanto eu ainda mandava mensagens para ele. Conversamos sobre várias coisas; no começo, apenas para passar o tédio. Ao menos, era essa a minha desculpa. Apesar de ainda ter recebido duas mensagens bem convidativas de Kurt, eu ainda queria evitá-lo. E Alex parecia uma perspectiva ainda melhor. Ele era, simultaneamente, interessante e ouvinte. Não me forçou a falar sobre o que aconteceu naquele dia entre nós, mas, ao mesmo tempo, não me deixou afogar nos sentimentos que me levaram àquela ponte em primeiro lugar. E mesmo quando eu parei de responder, ele mandou um gif bonitinho de gatinho, me desejando uma boa noite, apesar do fato de que dia já estava claro no céu.

Fofo.

Ou era a carência.

Por isso confirmei pela manhã o encontro. Não costumava sair com a mesma pessoa duas vezes, ainda mais seguidas (Kurt sempre era a minha exceção), mas… tinha eu saído com ele uma primeira vez? Tínhamos apenas dormido juntos, e ele tinha me rejeitado. Ainda contava aquele encontro como uma “primeira vez”. E depois iria decidir, a depender da qualidade dele na cama. Ainda queria saber qual era o mistério daquela tatuagem nas bochechas. Será que ele teria mais alguma…? Anotei na minha grande lista de afazeres descobrir. Esperava que o que diziam sobre pés grandes também se aplicasse, o homem era enorme…

Quando me olhei no espelho, reparei no meu sorriso leve. Seria um bom dia, decidi.

Me vesti de acordo. Uma calça jeans de lavagem escura apertada, que evidenciava minha bunda, um cropped branco, minha jaqueta vermelha e acessórios diversos. Brincos, anéis, pulseiras. Eu iria com tudo para conquistar esse boy. Ele era bonito demais para deixar a oportunidade escapar.

Uma vez arrumado, eu segui pelo corredor, segurava meus tênis em uma mão, e com a outra mandava uma mensagem para Alex. Havia combinado de avisá-lo antes de sair de casa, para nos encontrarmos no caminho, quando ouvi as vozes.

Eu sabia que meu irmão estava em casa. Desde quando retornei, mal lhe dirigi duas palavras. Não que Chase não estivesse acostumado a preencher silêncios com sons de televisão, pipocas estourando, e a presença dele.

eu te amo, jesse

suspiros contra a boca sedenta

Eu o odiava. Quanto mais me aproximava, mais as memórias vinham, intrusivas, de algo ido e bonito.

— Tudo bem continuar?

— Sim…

os lábios partidos e rubicundos

sua mão em meu peito

Claro que Chase aproveitaria todas as chances que nossa mãe não estivesse em casa para trazê-lo. Não era diferente de mim nesse sentido, apesar de eu preferir um cardápio mais variável de homens. Mitchell era o único ficante premium de Chase — que tinha passe livre na nossa casa, porque ele era nosso amigo de infância.

As lembranças vieram como navalhas em minhas mãos, o momento em que o conhecemos tão vívido quanto o presente; o sol do dia caía sobre os nossos ombros e aumentavam nossas sardas; os adultos insistiam para que passássemos protetor solar, um cartaz perto da mesa de comida anunciava que o número sem fim de convenção de médicos e enfermeiros estava acontecendo. Mitchell era mais velho que nós por dois anos, no entanto, não queria dizer que ele era mais alto que eu e Chase aos onze. O ajudante quase nos barrou de usar o brinquedo, menos por nossa altura de criança e mais pelo estado precário que ele estava. Eu decidi que ficaria muito melhor na parte mais rasa da piscina, apesar de saber nadar, enquanto Chase queria se aventurar. Proibições não eram um impedimento para ele. Naquela época, não pensávamos em consequências.

Chase e Mitchell seguiram uma estranha rivalidade. Era antipatia logo de cara, Chase veio a me explicar alguns anos depois. Ele simplesmente não gostava dele, algo em seu olhar o enervava.

Em retrospectiva, eu devia ter imaginado.

Os dois brigaram o dia inteiro. Primeiro, os funcionários tentaram separá-los, contudo, depois de nossos pais simplesmente não ligarem, eles desistiram. Naquela rivalidade estranha, os dois imperavam. Especialmente quando quiseram subir no tobogã que caía diretamente na parte funda da piscina. Os dois se encararam e decidiram que não iriam esperar pelo outro; e, antes que o funcionário responsável pudesse intervir, os dois desceram pelo tubo juntos, cabeça adentro, e se engalfinharam no processo.

Eu, na piscina, só pude ver o sangue subir na água, enquanto os dois buscavam o ar. O pânico surgiu ao ponto da festa ser encerrada para nós, que ganhamos uma visita ao hospital. Meu irmão ganhou sete pontos na cabeça, uma cicatriz, e um amigo para a vida toda.

E eu? Um problema.

por favor, não chore

eu te amo, chase

Cheguei no topo das escadas. A visão que eu recebi era caseira. Os dois estavam ali, no sofá, de shorts apenas, abraçados. Uma tragédia. A luz da televisão exibia um filme caseiro, ou seria um seriado? Não importava. As mãos deles estavam ocupadas com coisas que não eram a bacia de pipoca na cômoda a sua frente.

Um sentimento conhecido subiu à garganta, e eu corri escada abaixo, com a intenção de sair, mas eles notaram a minha presença.

— Jesse…

Não falei nada, e continuei indo em direção à porta. Nem olhei mais para eles, mas vi quando Chase se levantou e foi até mim. Eu não queria migalhas. Não queria olhar naqueles olhos tão parecidos com os meus, ver aquele rosto que era meu espelho, em exceção à pinta perto do olho direito, e esperar que tudo ficasse bem.

Porque não ficaria.

Minha respiração acelerou.

— Você vai sair?

Não respondi, e me sentei no pequeno batente.

— Pra aonde vai?

— É da sua conta? — Minha frase saiu rápida e curta.

Fôlego me faltava. Apenas queria sair. Eu precisava sair de imediato.

Precisava de ar.

— Jesse…

— Tchau, Chase.

Calcei meus sapatos de qualquer maneira e fechei a porta atrás de mim, sem olhar para o namorado do meu irmão, que apenas disse:

— Bela conversa que vocês dois tiveram. Achei que vocês dois tinham se entendido…

— Cala a boca, Mitchell.

— Venha calar.

Eu não precisava estar presente para imaginar o resto, e enquanto colocava meus fones, rezava para não precisar mais presenciar aquilo.


Corri.

Quando cheguei ao ponto de ônibus, estava completamente sem fôlego. As pessoas me olhavam como um maluco, mas eu não me importava. O sangue bombeava nos meus ouvidos. Estava vivo.

Esperei mais alguns minutos, e o carro apareceu. Sentei-me nas cadeiras mais altas do fundo, sentia meus pés balançarem e me recompus. Recostei a cabeça no vidro; esperei o tempo passar, e tentei não pensar em nada e em tudo ao mesmo tempo.

supernovas

Quando cheguei na estação, continuei em silêncio. Não olhei para ninguém. Sequer interagi, passava por elas, e existia no mar de pessoas. Mais uma estrela naquele firmamento.

— Jesse!

A primeira coisa que notei foi seu sorriso. Como se seu rosto se iluminasse por inteiro. Seus olhos verdes foram de preocupados, para se encontrar com os meus e brilharem. Tudo naquela presença em frente ao pequeno café se destacava da multidão, como se, pela primeira vez, visse em cores. Claro, a altura ajudava, assim como os cabelos ruivos flamejantes, que estavam domados em um rabo de cavalo; e céus, como ele parecia sexy naquele penteado. A tatuagem de “Ás” no rosto se destacava nas maçãs do rosto; e, por causa do frio, estas estavam um pouco coradas e firmes. Os olhos verdes tinham um pouco de maquiagem… ele parecia estar arrumado. Até as roupas que ele vestia pareciam melhores do que as que ele usara durante a aula. Era uma camisa simples, branca, com uma de flanela entreaberta por cima, que combinava com seus olhos verdes brilhantes. Muito gato, decidi. A camisa branca valorizava o corpo esguio, que eu queria explorar; e pensei que era uma pena nós não termos nos encontrado diretamente na casa dele. Poderíamos ter pulado muitas etapas.

Mas o rapaz queria chocolates e velas, aparentemente. Alguns queriam um pouco de romance antes do feito, e eu entendia aquele lado. Nem todo mundo podia ser como Kurt.

Meu sorriso aumentou e acenei para ele, pronto para atacar. Aquela noite seria ótima…

Era minha previsão, até notar uma pessoa ao seu lado. Era alguém muito bonito: cabelos lavanda, raspado nos lados, um cardigã enorme gráfico de uma banda cobria o corpo, leggings pretas e tênis branco completavam o visual. Os olhos de mel encaravam a multidão, assustados; e, de vez em quando, olhavam de soslaio para Alex, como se quisesse assegurar que ele não fugiria.

Eles estavam de mãos dadas. Pisquei um pouco, talvez fosse um truque de luz.

Claramente de mãos dadas.

— Jesse, aqui! — Ouvi de novo, mas estava pronto para dar no pé.

Meu sorriso morreu mais um pouco no rosto. Droga, não dava para simplesmente fugir, não dava? Eu não me metia com caras comprometidos. Muito menos trisais. Será que tinha dado match naqueles perfis de casais?

Se era comprometido, por que Alex havia me chamado para sair?

O pânico começou a subir pela minha garganta, novamente tornando difícil respirar. Estava cada vez mais tonto, porém, mesmo assim, meus passos me levaram a ele, apesar da minha vontade de sumir. O que fazer? Dar no pé naquele momento, ou dar um fora no rapaz? O namorado dele ao menos sabia que tínhamos passado a noite toda flertando pelo celular?

Ele me alcançou, ou fui eu quem chegou próximo primeiro?

— Jesse, que bom que você veio.

Ele estava tão perto. Com uma expressão tão familiar, mas igualmente inalcançável. A decepção me atingia com pontadas de frio no interior. Ele era apenas mais um desapontamento.

Desses, eu estava cheio. Ao menos, esperava dar uma foda naquela noite.

Eu sorri, apesar de tudo.

— Oi, Alex.


O nome dele era Dave Collins, e ele era um problema.

Eu o detestei de início. Havia algo nele, além do olhar assustado, que me embrulhava o estômago. A mão de Alex conectada a do estranho nunca vacilou. Desde que entramos na cafeteria — e eu nunca soube o motivo pelo qual eu concordei em entrar, e não dei uma desculpa qualquer para escapar… talvez fosse o choque, ou puro masoquismo —, eu desconfiei do rapaz. Era o porte, talvez, de seus ombros, como eles estavam tensos, o sorriso vacilante em seu rosto. O modo como ele tentava me incluir em sua conversa.

Mas foi, definitivamente, o modo como ele fez o pedido.

— Um frappuccino de caramelo com chantili extra pra mim — Alex disse, com energia. Dave estava logo atrás, enquanto eu estava ao seu lado. — O que vocês vão querer?

— Um pequeno sem açúcar pra mim — pedi, porque eu não tinha tido minha dose de cafeína do dia.

— Um… mocca… com… — Olhei para o rosto de Dave, que estava extremamente vermelho. Ele não encarava o funcionário do estabelecimento, que parecia muito paciente. — Com extrato de… avelã…

— Dave, não é? — O funcionário o reconheceu, e as orelhas do dito cujo ficaram ainda mais vermelhas. — Deixa que eu faço o pedido dele — falou para a outra funcionária. — É um pedido especial. — E piscou para ele.

Dave correu para trás de Alex.

Aquele casal estava cada vez mais estranho. Seria a tal não-monogamia? Eu não costumava me relacionar mais de uma vez com uma pessoa para ser considerado uma relação…

E o que quer que eu tivesse com Kurt, não era uma relação para começar.

Me sentia cada vez mais confuso. Então aquele Dave Collins estava interessado no barista. Mas então por que ficar de casal com Alex? Estaria Alex interessado em Dave, e por isso não reparava nas investidas que o outro fazia no barista? Ou ele tinha intenção de traí-lo? Alex não podia ser tão idiota.

Sentamo-nos em um dos cubículos e fiquei de frente ao ruivo, enquanto ele sorvia do seu praticamente sorvete, com o chantili alto, que borrou o canto de seus lábios. Droga. Eu ainda sentia desejo por ele, porém, teria que reprimir o sentimento. Eu simplesmente não destruía relacionamentos.

Não mais ao menos.

Meu olhar caiu de novo sobre as mãos entrelaçadas, mas, dessa vez, Alex notou meu desconforto.

— Ah, isso? Não se preocupe.

— Não estou preocupado. — Disfarcei bebericando do meu café.

Aquela marca era horrorosa. Eu fazia um café bem melhor do que aquilo.

Para a minha surpresa, quem falou foi Dave.

— Eu e Alex não estamos namorando se é o que está pensando. Ele apenas… me ajuda.

— Ajuda?

— Com as coisas. — Ele deu de ombros. — Com a vida…

Eu ergui uma sobrancelha. Alex interveio:

— Dave tem agorafobia. Ele não gosta de multidões, nem de sair de casa em geral. Muita ansiedade. Sair comigo ajuda muito, já que me conhece desde sempre.

— Andar de mãos dadas também?

Aquilo não pareceu constranger nenhum dos dois.

— É um hábito. — Alex deu de ombros. — Desculpe-me se passou a impressão errada…

— O que Alex quer dizer — Dave interveio, parecia relaxar, enfim, na minha presença — é que ele está completamente, absolutamente, e plenamente, solteiro. E em necessidade de uma foda, então se sua bunda estiver disponível…

Alex quase morreu engasgado.

— Dave!

Dave tinha um sorriso de aprovação, que não conseguia disfarçar apenas bebendo do café com chocolate quente. Bem, era um aliado, apesar de improvável. Eu queria dar para Alex, mas… esperava que eles não esperassem por mais. Seria apenas uma noite. Aliás, não era estranho apresentar sua ficada de uma noite para seu melhor amigo?

Expectativas desleais.

Dave piscou para mim, levemente traquinas, e se levantou, deixando a mesa, e a mão de Alex, livres.

— Estou indo.

— Está na hora, não é? — Alex olhou as horas em seu celular, que ainda tinha a tela rachada. — Precisa que eu vá com você?

— Não, fique aqui com Jesse. Eu volto daqui a pouco. Não vou atrapalhar mais o date.

Eu não sabia do que os dois falavam, mas Dave inspirou profundamente, e saiu da cafeteria, nos deixando à sós. Eu encarei Alex, que apenas olhava Dave sair porta afora, e ele se virou para mim.

— Dave tem uma consulta, deve voltar em uma hora.

— Consulta? De quê?

Alex olhou mais uma vez para a tela rachada do celular e apenas sorriu.

— Não se preocupe. Não é nada grave. É de rotina. Ele vem toda semana.

Ah. Uma consulta psiquiátrica então.

— Eu fico feliz de verdade que você aceitou meu convite, Jesse. Mesmo. Eu queria conversar com você.

— E não conversamos a madrugada inteira? — provoquei.

— Não cara a cara. Direito, assim.

— É verdade. Em realidade, gostaria de lhe fazer um pedido.

Eu vinha pensando naquilo. Desde a primeira mensagem, desde que decidi vir àquele encontro. Alex me olhou sério, e depositou o copo de volta à mesa.

— Claro que pode.

— Gostaria que esquecesse aquela noite. Que nós começássemos do zero a partir de hoje. Como se eu fosse um estranho que tivesse vindo à sua mesa, pedido uma bebida e te paquerado por seu número apenas neste café, porque…

Porque aquela noite foi uma merda, era a verdade não falada de meus lábios. Não queria me lembrar, apesar do hematoma já estar um pouco menos roxo, e arder menos quando eu tomava banho.

E era porque… eu queria conhecê-lo melhor.

Tinha aquela pequena estrela em meu peito, afinal.

Alex pareceu pensar um pouco, bebeu do copo e o levou de volta à mesa. Aqueles segundos de silêncio foram tortuosos, no entanto, eu estava preparado para uma rejeição. Ou pior, para que ele perguntasse o que eu estava fazendo naquela ponte.

No fim, não importava se ele aceitasse ou não. Alex não era especial, eu podia achar outra pessoa com facilidade. Ele era apenas mais um no mar de tantas possibilidades, mas… por que então eu prendi a respiração antes de ele responder?

— Certo — ele acatou. — Então, sr. estranho, poderia me dizer seu nome?

E estendeu a mão para mim para que eu o cumprimentasse.

Ainda fiquei parado alguns segundos, surpreso.

— Você não vai perguntar nada? Você não se importa?

— Bem, não tenho como me importar com pessoas que não conheço. — Seu sorriso era misterioso, assim como ele. A sensação de alívio que me atingiu percorreu todo meu corpo, mais rápido que um orgasmo. — Qual o seu nome, sr. Estranho?

E eu sorri estendendo minha mão para pegar na dele.

— Você que é o estranho, Alex. Meu nome é Jesse Bennett.

— Jesse Bennett, meu nome é Alex Morris. Prazer em conhecê-lo.


Terminamos as bebidas e uma conversa animada se instalou na mesa. Nem vi quando dez minutos se tornaram meia hora, e meia hora se tornou uma hora inteira.

— Então você se tornou modelo vivo por acidente?

— Acidente é uma palavra muito forte. Eu diria que indicação seria mais correto. — Foi um dos meus casos que me indicou, acho. Não lembrava qual deles, no entanto, todos se misturavam nos lençóis de minhas memórias.

— Devo dizer que você leva jeito para coisa. — Alex riu, me deixando um pouco embaraçado.

Eu levei uma mão para os cabelos e ajeitei minha franja, que insistia em cair nos meus olhos.

Droga. Aquele homem insistia em ser bonito. E, ainda por cima, deveras agradável. Fazia muito tempo que eu não apreciava uma boa conversa. Em geral, eu partia para a parte da boa foda. Ou nem isso. Eu costumava me contentar com bem pouco.

Mas Alex Morris…

Me inclinei mais contra a mesa, me derretendo contra ele. Meu pé tocou de leve contra sua perna, e ali fiquei.

— Então Dave é escritor?

— Sim. Ele está cursando Escrita Criativa. Está me enlouquecendo com um tal de desafio mensal, mas eu sei que ele conseguirá se sair muito bem.

— Ah, acho que sei do que está falando. Como você…

Queria perguntar “como você o conheceu?”, inquerir mais sobre aquela amizade estranha, mas a mão de Alex tocou mais uma vez o celular, e visualizou as horas.

— A consulta de Dave deve estar acabando — ele anunciou, e deu fim àquele encontro.

Eu estava interessado no que faríamos a partir dali, mas fiquei calado. Normalmente, era o proativo da relação, contudo, havia algo na situação que me fazia temeroso. Que ele desse as cartas a partir dali, porque eu ainda não descobrira qual era o seu jogo. Queria que ele desse o primeiro passo naquele gelo fino…

Para saber se podia me jogar naquele abismo.

Eu era um covarde da pior estirpe. E assim como modelar, fingir era algo que fazia muito bem. Eu cativava as pessoas, e antes que elas notassem as ranhuras da minha máscara, eu as abandonava.

Restava saber quanto duraria essa minha relação com Alex. Até agora, era o rapaz que mais tinha me enrolado até então. Normalmente, depois do primeiro match, era uma questão de algumas horas de corpos entrelaçados e saídas rápidas, voltando na madrugada para casa. Com Alex, era um verdadeiro recorde.

— Uma pena que vai acabar… — murmurei baixinho, enquanto Alex se levantava. Meu olhar o seguiu, e eu vi Dave entrar de novo na cafeteria.

As coisas boas duravam pouco.

— O que disse, Jesse? — Alex se virou para mim, brevemente.

— Nada, nada… — disfarcei. Como disse, era bom naquilo. E Alex nem percebeu, estava muito concentrado em Dave.

O rapaz nos alcançou, o fôlego entrecortado por passar por tantas pessoas.

— Foi tudo bem? — Alex, de imediato, segurou sua mão.

Uma pontada de ciúmes me atingiu, mas tive que me recordar de que eles eram apenas amigos. Apenas amigos. Era isso.

Ó céus, era Mitchell tudo de novo, não era?

— Sim! Foi ótimo. Ela é ótima — ele começou a falar, olhando para mim. — Falei de você.

— Só coisas péssimas, como sempre.

Como o sorriso dele era bonito. Droga, eu deveria parar; mesmo assim, não conseguia deixar de reparar em como o rosto dele se iluminava ao ver que Dave estava bem, como os ombros dele se relaxavam, como se todo o ser dele estava leve ante àquela notícia. Dava para notar que ele realmente se importava com o bem-estar do amigo.

Por isso a inveja me inundou. Não havia ninguém no mundo que me olhasse dessa maneira…Não conseguia nem imaginar um mundo em ter tal atenção. Era quase impossível, um desejo jogado aos céus.

— Ela falou que eu deveria ter mais coragem para fazer coisas. E não forçar você a viver as coisas que eu deveria viver. — Ele deu de ombros.

— Ah, como me forçar a encontrar pessoas pelo Tinder, e não você mesmo sair para ir atrás do seu crush?

As orelhas de Dave se esquentaram, e ele olhou diretamente para o rapaz no balcão. Fiz o mesmo, e tentei avaliar o estrago.

Era óbvio o motivo da quedinha de Dave. O tal barista era um pouco mais alto do que Dave, com cabelos curtos e arrepiados, as mãos ágeis enquanto trabalhavam nos drinks; e o sorriso eterno estampado no rosto enquanto travava com os clientes. O rapaz obviamente tinha bastante carisma, e era bem-querido pelos que passavam por ali, porque mais de uma pessoa deixou algumas moedas no pequeno pote que arrecadava a gorjeta dos atendentes. Não era muito difícil de se apaixonar. Era o apelo do clichê.

— Já falou com ele então? — intrometi-me na história.

Alex e Dave pareciam ter seu próprio mundinho, mas eu queria intervir. Me meter entre eles.

Eu não ficaria de fora.

— Ah, não, claro que não. — Dave ergueu as mãos para mim, confirmando a negação. Ele parecia mais do que constrangido. — Não quero atrapalhar ele no seu horário de trabalho…

— Mas se você não vai incomodá-lo agora, vai ficar esperando que nem um stalker depois do horário do seu serviço? — Ergui uma sobrancelha.

— Isso também não…

— Então vai deixar a oportunidade escapar?

Alex colocou uma mão no meu ombro; senti o calor de sua palma sobre meu corpo e mordisquei o lábio inferior. Droga, ele causava um efeito devastador apenas com um mero toque. Eu queria mais. Muito mais.

— Jesse, é melhor não forçar nada…

— Não vou forçar — disse, e segurei a mão de Alex contra a minha.

Por breves segundos, a tive em meus dedos, senti seu toque igual a um náufrago que sente o gosto doce da água filtrada depois de dias no mar; mas me foquei. Uma coisa de cada vez.

— Ele precisa de um incentivo.

— Incentivo? — A voz baixa de Dave tinha notas crescentes de pânico, porém, não liguei para isso.

Abandonei meus dois companheiros e fui em direção ao caixa. Para a minha sorte, este estava vazio, então o sorriso que o barista me dirigiu foi genuíno.

Ah, se ele soubesse.

— Olá, seja bem-vindo. Como posso ajudá-lo?

Comecei a analisá-lo rapidamente. Ascendência asiática, provavelmente chinesa. Ele não tinha sotaque e, na plaquinha, apenas seu sobrenome em letras prateadas. Pelas olheiras, deveria estar no final do turno. Os cabelos arrepiados eram um charme a mais. Seu cansaço era visível de longe.

Um detalhe importante eram algumas medalhas que ele carregava no cordão de seu crachá. Um bottom com a bandeira gay (o que era importante, afinal das contas), e outros dois com café e gatos, o quarto de um caderno com algo escrito.

Era a minha chance.

— Oi, boa tarde… eu queria pedir, mas, primeiro… esse pin tem a ver com você ser escritor?

Ele ergueu uma sobrancelha, parecia um pouco intrigado. Ótimo, tinha conseguido fisgar o peixe. Agora era conseguir pegá-lo.

— Sim. Eu participo de um grupo de escrita, e todos os anos em novembro nos reunimos pra esse desafio mensal. Sou um dos organizadores, por isso, se tiver dúvidas…

— Nossa, que coincidência! Meu amigo ali — e fiz total questão de apontar para Dave, que entrou em pânico — também escreve. Será que você conseguiria falar com ele um pouco, explicar como essas coisas funcionam?

Ele pareceu surpreso, e suas bochechas coraram ao ouvir o comentário da sua colega:

— Finalmente algum dos dois deu o primeiro passo. Não aguentava mais ouvir dessa paixãozinha de cliente, Samuel. — Este soltou uma risada nervosa. — Vai lá falar com ele, eu aguento as pontas.

— Uh…

— Bem, você podia convidá-lo para o seu grupo de escrita, né? — Dei a sugestão. — Trocar telefones é de praxe nesses casos, não?

Parecendo encurralado, ele simplesmente desistiu.

— Você não quer pedir nada no fim?

Dei de ombros, e a sua companheira apenas continuou:

— Dez minutos, e nenhum segundo a mais. — Ela revirou os olhos.

— Certo.

E ele saiu de trás do balcão me acompanhando. Ponto para mim, e pontos extras pela expressão de pânico que Dave tinha, escondia-se como possível atrás de Alex. Este tinha uma expressão divertida no rosto, esperava os próximos acontecimentos.

— Dave, este é…

— Samuel — ele intercedeu.

Eu ergui uma sobrancelha, e o vi ir em direção à Dave, dirigindo-lhe a palavra, e ofereceu-lhe uma mão para cumprimentá-lo.

— Soube que é um companheiro de armas meu?

— Companheiro de armas? — Dave estava embasbacado.

— Não está nesta jornada de escrita comigo?

— Ah! — A postura toda de Dave mudou; agarrou o caderno com mais força. — Estou sim. É bem difícil, não é?

 

— É sim. Este é meu quarto ano tentando, mas já consegui vencer os três anteriores. Estou escrevendo um romance com vampiros trisal. Sobre o que é o seu livro?

Dave corou muito. Muito mesmo.

Ah, virgens, pensei.

— Eu… estou escrevendo sobre uma criança que é uma princesa que nasceu sem coração… e um viajante que vem de longe tentar resgatar ela…

Samuel abriu um sorriso. Eu achei que Dave morreria ali mesmo se não estivesse escondido atrás de Alex.

— Olhe, eu não tenho muito tempo — e ele olhou para sua companheira de balcão, cuja fila já ameaçava se aglomerar de novo —, mas eu posso lhe dar meu telefone pra trocarmos informações? Eu gostaria muito de saber mais sobre essa tal princesinha e sobre esse tal viajante. Posso lhe dar umas dicas. Sem falar que haverá um encontro de escritores aqui neste café, eu acho que você deveria participar.

— Cla… claro!

E eles se perderam em alguns segundos anotando os números um do outro.

— Muito… muito obrigada, Samuel!

— Eu que agradeço, Dave. — E ele piscou um olho. — Preciso voltar para o trabalho. Nos falamos em breve!

E ele voltou para trás do balcão.

— Vamos indo? — Alex disse, e amassou os cabelos lavanda de Dave.

O sorriso dele ia de orelha a orelha, e eu senti uma inveja subir pela garganta. Eu não lembrava a última vez que me senti assim, tão inocente ao receber o telefone do cara que eu gostava. Aliás, eu achava que nunca tinha me sentido assim. Essa emoção, essa comoção… o palpitar nervoso do coração ou as palmas suadas. Para mim, sempre foi algo mecânico, um trocar de mensagens e de fluídos corporais.

Às vezes, as coisas poderiam ser mais inocentes.

— Vocês já vão?

— Eu tenho que levar ele pra casa — Alex explicou. Eu me senti um pouco desapontado, e isso me surpreendeu. Eu não queria que ele fosse embora, que terminasse aquele encontro daquela maneira. Foi muito pouco tempo… — Mas eu gostaria que você me acompanhasse até a minha casa se não se importar.

Um sorriso sacana surgiu no meu rosto. Finalmente o convite certo.

— Eu adoraria.


— Você se importa se eu fumar aqui?

Eu ergui os olhos enquanto me aconchegava mais na cama de Alex. A verdade era que já me sentia em casa naquele lugar. Não havia muitos lugares para ficar — e eu já havia dormido ali mesmo —, então foi natural me jogar nos lençóis de Alex e me espreguiçar; enquanto o dono do apartamento se mexia e organizava o pequeno caos que ele criara na minha ausência.

Aproveitei o momento para admirar o corpo dele, e com olhos preguiçosos, o encarei ante ao seu pedido. Lógico que ele era um fumante. Tinha que ter algum defeito naquela perfeição que era Alex; e seus cabelos ruivos e seus olhos verdes floresta e sua tatuagem no rosto em forma do símbolo do ás de espadas…

— Não. — Porque era a verdade.

Fumar ou não fumar, não me incomodava nem um pouco. Estando no meio artístico, você acabava perdendo um pulmão ou outro. Então não liguei quando Alex foi até um canto da cômoda blocada, tirou uma carteira de cigarros mais velha do que ele próprio, pegou um cigarro e o acendeu com um isqueiro prateado.

Droga, eu estava hipnotizado por seus movimentos

Queria provocá-lo à ação. Eu o teria.

— Então você esteve indo atrás de rapazes no Tinder?

Alex parou e inalou mais da fumaça do cigarro. Ele tinha dedos esguios, com unhas delicadas. Ainda tinha algumas manchas de tinta, algumas pequenas cicatrizes… eram mãos com histórias. Eu queria desvendá-las. Queria que aquelas mãos enormes me tocassem, que explorassem o meu corpo…

Que ele jogasse aquela fumaça sobre meu corpo nu, que me envolvesse por completo naquele mistério.

— Pode-se dizer que sim.

— E deu algum fruto nisso?

Alex sorriu de novo, enigmático.

— Se tivesse, estaria eu aqui falando com você?


Você estava ali, de volta ao meu apartamento.

Como um gato, se mexia e se espreguiçava na minha cama. Agia com tamanha naturalidade que parecia que nos conhecíamos há anos, e não uma semana.

Sentei-me perto do duto de ar, para que a fumaça do cigarro não ativasse o alarme de incêndio. O banquinho era velho, e eu o havia recolhido do lixo de outra pessoa, mas, como diziam, era necessário reciclar, reusar e reutilizar. Me servia muito bem quando eu usava minha mesa de desenho, e para momentos em que eu precisava fumar dentro de casa no inverno.

No entanto, uma vontade agitava as minhas mãos e as deixavam inquietas. Achei que o cigarro aplacaria a necessidade, que diminuiria a urgência do vício, mas não era isso que meu corpo clamava. Não. Meus olhos iam para um lado do meu apartamento, e sempre paravam na cama, em especial, nas áreas em que as roupas de Jesse não cobriam.

Por que ele tinha usado um cropped logo no inverno?

Eu queria…

Assoprei um pouco da fumaça, e senti minhas orelhas esquentarem.

— Se minhas empreitadas no Tinder tivessem dado algum fruto, tenha certeza de que você não estaria na minha cama — continuei.

Você riu. Droga, ficava cada mais difícil resistir à urgência quando eu via o modo como sua camisa subia em direção ao seu torso, expondo a pele de seu abdômen definido, como os músculos de seu pescoço se tensionavam por sua risada; e seu pomo de adão subia e descia em sua garganta…

Tudo era muito belo.

Eu queria eternizar aquele momento de alguma forma.

Da única maneira que eu sabia bem como eternizar momentos, na realidade.

— Você se dá muito pouco valor, Alex. Tenho certeza de que os homens do Tinder caíram aos seus pés.

— Duvido. Aposto que você tem mais sorte do que eu.

Seu sorriso era enigmático. Eu sabia que você não devia ser virgem, mas aquele sorriso indicava que você não era estranho a ir para casa de, bem, estranhos. De outro modo, como não ficaria confortável em ficar nu no meio de uma sala cheio de jovens adultos cheios de tesão e cansaço? Era óbvio que aquela profissão era perfeita para você, Jesse.

Eu só não sabia o quanto.

Suas mãos passearam por seu estômago, e eu engoli em seco. Seus dedos alvos deslizavam por seu músculo oblíquo externo enquanto dedilhavam por sua pele, arranhando-a no processo; chegou à curva da linha alba, o contorno perfeito de um traço.

— Você quer ter sorte, Alex?

— Eu quero…

Eu comecei a frase, quando era óbvio que você sabia que meu olhar estava completamente hipnotizado por seus dedos. Fazia de propósito, para me provocar, e passou do apex de sua pélvis para o alto de suas costelas.

Droga.

Suas mãos começavam a se movimentar na cama quando eu disse:

— Eu quero desenhar você.

Seu rosto transmitiu algum choque e, por alguns segundos, você ficou parado no lugar. Mas logo se recompôs, engatinhou em minha direção, saltou da cama e foi até o banco onde eu estava sentado. Eu fiquei parado esperando suas ações. Meu cigarro continuava em minha boca, porém, eu não o tragava. O ar entre nós parecia suspenso.

Seus olhos estavam enevoados.

— Eu modelarei para você, Alex Morris — você disse, e arrancou o cigarro com seus dedos esguios —, se parar de fumar e me comer agora.

Minha boca aberta parecia estúpida agora sem o cigarro.

Claro que você propôs algo do tipo. Eu apenas hesitei — não porque não quisesse, mas… como reagir propriamente? Eu estava atraído por você, lógico, mas o que fazer nessas horas? Iza sempre reclamou que eu não tinha atitudes, que sempre seguia o fluxo, e era extremamente lerdo, além de devagar. Eu não sabia fazer as coisas como um furacão como você. Você veio e derrubou todas as portas, derrubou prédios e pontes.

Ir para a cama logo no primeiro encontro? Eu nunca tinha feito isso. Não era do meu feitio, mas…

Jesse, você não era qualquer um.

— Jesse… — Meu ar faltou.

A decepção no seu olhar foi visível quando eu não o correspondi. Suas intenções eram claras: você queria algo a mais. Quanto a mim…

Eu não sabia o que queria.

— Preciso ir — você anunciou, e começou a reunir os seus pertences.

Aquilo machucou o meu coração de uma forma que eu não soube o que fazer. Eu precisava impedir. Precisava ter você comigo, ao menos por mais algum tempo. Eu sabia que, se você saísse por aquela porta, nunca mais nos encontraríamos.

E uma coisa que o Destino unira, não poderia ser desfeito daquela maneira.

Agarrei seu braço e o impedi de continuar.

— Jesse, por favor.

Você parou, mas não disse nada, apenas encarava-me com uma expressão neutra. Eu tinha feito merda, não era?

— Eu preciso de mais algum tempo. É tudo um pouco novo demais para mim. Eu ainda… não estou acostumado com isso.

— E precisa? Talvez eu não queira um cara que demore a se acostumar.

— Talvez não. Mas eu quero você.

Você se virou para mim, o olhar azul completamente surpreso. Eu sei. Eu também estava surpreso com a minha própria admissão, com a vontade que nascia dentro de mim.

— Eu quero te tocar. Mas não sei se isso significa o que você quer que signifique.

Eu vi seus olhos correrem da porta para a cama, e a distância entre elas. Pois bem. Suas mãos tocaram as minhas, colocando-as em seu estômago e você pediu baixinho:

— Me toque.


Nunca me senti tanto um adolescente virgem e desengonçado. Estava apenas de meias, calça e camisa, mas meu coração batia no peito, acelerado, como se fosse a primeira vez que iria tocar em alguém. E, supostamente, iria ser apenas aquilo. Deitamos lado a lado na cama. Sua camisa foi a primeira peça de roupa a ir embora. A visão era estonteante demais, seu peito levemente corado pelo frio e pela excitação, os mamilos roseados intumescidos pelo frio; sua pele se arrepiava ao toque de meus dedos.

Eu pedi perdão a você e, no entanto, resolvi me aproveitar da situação.

— Vire de costas para mim — pedi.

Você me deu um olhar estranho, mas acatou o meu pedido.

Eu tinha o seu dorso nu, Jesse, ao meu contato, e podia explorar sua pele ao meu bel prazer. Ficar em silêncio foi um contrato mútuo e não escrito, que foi preenchido por nós dois, porque dizer uma palavra seria quebrar o momento, quebrar o tom do que se passava ali. Sua respiração estava acelerada, como a minha, então apenas podia sentir o que se passava com você.

Toquei, com apenas as pontas dos dedos, seu trapézio e senti as formas, e logo estava, ali, a tatuagem. Dois buquês de hortênsias, com algumas pétalas flutuando, formavam uma constelação de tirar o fôlego. Um azul e o outro rosa. Eu havia visto aquela tatuagem antes, por foto, mas presencialmente, ela era ainda mais estonteante.

Tracei a tinta encravada na pele com o indicador e o dedo médio, sentia a leveza de sua tez. Mesmo com as cicatrizes deixadas pelo desenho, a textura dela era quase uma seda. Eu não queria me conter, queria tocá-lo cada vez mais, mas fui calmo. Paciente. Eu tinha todo o tempo do mundo.

Desenhei cada traço, aprendi seus contornos, e quando me cansei do desenho ilustrado, passei por sua omoplata afiada, e eu senti quando se abalou. Como se pequenos choques percorressem a sua pele, todo o seu corpo tremia.

Eu me aconcheguei mais a você, nossos calores se uniram.

— Ah… — Você arfou.

Movi minhas mãos e espalmei sua pélvis, senti seu músculo oblíquo externo se contrair. O cós de suas calças ficava próximo a ponta de meus dedos; e, com uma calma, que não condizia com a velocidade com a qual o sangue era bombeado para as minhas partes baixas, eu agarrei sua ereção.

As coisas se moveram bem mais rápidas daí por diante.

Mãos afoitas desfizeram o enlace de suas calças, e você se viu livre, pulsante e sedoso em minhas mãos. Ainda assim, eu ainda queria te provocar. Fui lento, massageei a cabeça de seu pênis, sentia como suas veias pulsavam sob meu comando, apenas para que você arfasse sob mim, que ficasse sob minha total mercê.

Você não estava disposto a ir sem lutar, no entanto.

Suas mãos começaram a explorar o meu corpo, tocavam, exigiam, clamavam território; e agarraram com vontade a minha bunda. Seu torso se encaixou ao meu, e com vontade, você começou a rebolar contra a minha própria ereção, sabia exatamente o efeito que causaria em mim.

Droga, Jesse.

Eu mordi o seu ombro, e você gemeu.

— Acalme-se — alertei.

— Mais… — você implorou.

— Darei tudo o que você quiser.

E era uma promessa que eu estava disposto a cumprir.

Bombeei sua ereção enquanto meu polegar massageava sua glande, e ouvi seu arfar se transformar em suspiros conforme eu aumentava a velocidade. Continuei a mordiscar seu pescoço, porque isso me pareceu uma atividade deveras agradável para a minha boca sedenta; e conforme você se agarrava mais a mim, parecia que eu acertara exatamente onde você mais queria.

— Ah… Alex! — Você arfou, e uma chave girou em mim, abrindo a caixa de litígio ao ouvir me chamar pelo nome.

Droga, eu queria muito fazê-lo gozar em minhas mãos.

— Jesse — eu mesmo arfei, e mordi seu pescoço; eu sabia que a marca ficaria ali por alguns dias, porém, não me arrependi.

Aquilo foi o necessário para que o gozo viesse, manchando a minha mão e seu estômago, seus olhos se fecharam, e as mãos liberaram a posse.

Uma sensação de satisfação me preencheu, mesmo que eu mesmo não tivesse atingido o clímax. Mas vê-lo ali, tão entregue, Jesse… pareceu certo. Me deu vontade de fazer aquilo mais vezes.

Você, como sempre, foi mais prático.

— Preciso me limpar.

Eu me virei na cama e peguei alguns lencinhos que mantinha na cômoda. Você pegou alguns e limpou a sujeira, eu segui sua liderança. Depois, ficamos ali, com sua cabeça ainda apoiada em meu braço, nossos corpos ainda unidos.

— Você quer que eu faça o mesmo? — E tocou em minha ereção, que doía, apertada em minhas calças.

Neguei.

— Acho que podemos ir devagar — eu disse apressado. — Não que eu não tenha gostado. Eu gostei. E muito. Mas acho que podemos…

— Ir devagar, quase parando. — Jesse sorriu. — Se for sempre assim, não me importo.

Eu apertei o nariz dele.

— Ei!

Aproximei meu rosto do seu, com a intenção de beijá-lo, mas parou minha investida e segurou, com as mãos, minha boca.

— Não, obrigado. Isso não.

Não entendi e ergui as sobrancelhas.

— Eu acabei de te dar um orgasmo.

— É que, pra mim, de alguma forma, beijar é mais íntimo do que o que acabamos de fazer. — Eu não queria estragar o que estava acontecendo, mas, ao mesmo tempo, eu não queria perder uma oportunidade por ir rápido demais, então deixei para lá; embora minha expressão devesse ser de decepção, porque seu semblante mudou. — Alex Morris… — Você revirou os olhos. — Você é impossível.

E mordeu o lábio inferior.

— Você vai ficar? — arrisquei, a esperança dançava em meus lábios, e dela, saltou para os seus; fazendo os se curvar lentamente, apesar da sua resposta demorar segundos a mais no ar.

— Sim. Eu fico.

capítulo 6

flor da lua

Eu já havia passado alguns finais de semana na cama, mas não um tão literalmente. Apesar da clara demarcação de limites — sem beijos envolvidos —, foi a primeira vez que fui acordado de maneira tão… insistente. Meus sonhos se moveram em formato de luzes, com a sensação de algo molhado, e, brevemente, senti que mãos exploravam meu corpo; ao abrir os olhos, azul-celeste me encontrou, desesperado e faminto. 

— Alex… — Você gemeu para mim.

Ainda na penumbra, com a noite se tornando dia, e termos dormido tão próximos, aquele calor não me era estranho, mas suas mãos se moviam sobre o cós da minha cueca, polegares envolviam meu pau que acordara antes de mim. Notei o arfar de sua respiração, que se confundia com a minha.

— Por favor, eu tô tão duro…

Bem, você não precisava falar mais nada.

Minhas mãos tomaram o controle, com as suas envoltas no meu pescoço, o apertaram de leve; e eu juntei a sua carne com a minha, o calor de seu pré-gozo esquentava ao se derramar sobre mim. Não sabia como poderia ficar mais duro, e usava o polegar para provocar-lhe, com a unha em sua glande; você soltou um longo gemido que me assombraria por anos. Você se apertou contra mim, minhas pernas entre as suas, enquanto o movimentar de cima para baixo nos enlouquecia.

Você escondeu seu rosto contra meu ombro, seu hálito molhava minha pele a cada arfar.

— Aqui. — Gemeu, segurava a minha outra mão e a guiou para sua bunda. — Me toque aqui.

Agarrei sua carne com força, e senti o seu desespero. Seus gemidos saíam em pequenos soluços a cada ação; eu mordi meu próprio lábio. A visão que eu tinha sua, os ombros corados, o pequeno tremular de sua pele… eu poderia gozar somente por lhe olhar.

— Aqui… — Era insistente seu chamado, mas…

— Desculpa, não tenho lubrificante aqui, não quero lhe machucar.

— Não precisa. Por favor, Alex.

Você implorou, e eu apenas atendi. Um desejo sobrenatural surgia e voltei minha mão brevemente para meus lábios, lambi meus dedos para que houvesse alguma lubrificação nesse sentido. Seu olhar desesperado me acompanhou, e, ao pegar meus dedos, você também os trouxe à boca, os sugou com vontade.

— Pronto.

— Jesse… — Arfei.

Guiou minha mão de volta para sua entrada, e atendi mais uma vez. Sempre que quisesse algo, eu certamente atenderia até mimá-lo irremediavelmente. Adentrei seu corpo, e estranhei a facilidade. Não havia muita resistência e, em pouco tempo, eu já estava por completo em seu interior, movia dois dedos dentro de você. O apertar de suas mãos marcavam minha pele com manchas vermelhas e roxas, e seus gemidos certamente seriam um tópico de conversa entre os vizinhos na manhã seguinte. Eu continuei a mover nossos membros em conjunto, ao mesmo tempo que movia meus dedos em seu interior; e embora a pose fosse um pouco improvisada e sem jeito, o modo que sua boca derramava suspiros era tal qual uma orquestra tecendo uma bela música. Perdi-me em você — pela primeira vez, e por completo. No mar de possibilidades, eu não estaria em qualquer outro lugar, e meus outros eus certamente estariam com inveja de mim neste momento.

— Jesse…

— Mais rápido… — Seus olhos fechados, seu rosto corado, uma pintura em meu coração.

Meus suspiros ecoaram naquela sinfonia, e quando o mar azul me encontrou, fui completamente arrebatado.

A música de suspiros tornou-se áspera, com respirações rasas, enquanto sentia minha semente se misturar com a sua. Você voltou a se vestir, assim como eu, mas encontrou ninho nos meus braços, apesar da sujeira.

— Tudo bem? — perguntei.

— Tem algum problema?

— Não, é só que não posso dizer que acordei dessa forma várias vezes na minha vida.

Você soltou uma risada baixa, e apenas se aconchegou, seu nariz gelado tocou a base do meu pescoço, um encaixe perfeito. Ficou alguns minutos em silêncio, enquanto a noite desembocava no dia; e achei que simplesmente apagara, meu próprio sono avançava nos meus olhos como ondas. Mas sua voz clara me atingiu, e acordei mais uma vez.

— Eu só não consegui dormir.

— Está tudo bem? — A preocupação me subiu à mente, apesar da sensação que deveria estar tão cansado quanto eu.

— Perfeito. Eu só fiquei excitado demais. Não se preocupe, garotão. — Senti seus lábios contra minha pele e fechei os olhos.

Era a primeira vez que me sentia dessa forma, tão… vivo. Era uma sensação completamente nova, e queria aproveitá-la ao máximo. Mas, ainda assim, com você em meus braços, abracei mais uma vez a inconsciência.

O final de semana estava apenas começando.


Passamos o sábado na cama, com apenas algumas pausas para comer e bem… Alguma outra forma de comida. Você podia ser baixinho, no entanto, tinha uma energia fora do comum. Entre descansos e refeições, peguei meu caderno de desenhos e esbocei várias imagens, e completei, com sucesso, uma das tarefas do semestre que era encher um caderno de figuras humanas aleatórias. Tudo bem só haver uma pessoa, além de Dave, não era? Havia algo nas suas formas, nas linhas que traçavam seu sorriso, que eu apenas queria desvendar.

Com meu empenho, as linhas do lápis de carvão preencheram mais uma sombra, e encarei seu rosto, a bela adormecida de meus traços; quando o encarei, seus olhos estavam abertos, e pequenas covinhas emolduravam o seu sorriso.

— Vai ficar me desenhando assim, de pau duro?

Eu nem notara o meu estado de excitação, tamanho meu fascínio. As roupas tinham sido abandonadas em algum momento — a pedido seu —, e uma vez que as cortinas foram baixadas, não havia problema algum. Meu pau pulsava, mas eu não tinha necessidade de me satisfazer, apesar da sua primeira atitude ter sido se mover contra mim; sua pele encontrando a minha, sua mão tomando conta da minha excitação.

— Deixe-me cuidar disso.

— Difícil negar um pedido desses. — Brinquei. — Especialmente com o que tem em mãos.

— Mercadoria preciosa, huh? — você continuou, mas ao invés de responder à pergunta ou continuar as provocações, sua cabeça se abaixou e seus lábios tocaram minha glande, para, então, tomá-lo por completo na boca.

Qualquer resposta que eu poderia elaborar fora esquecida no mesmo segundo.

— Puta merda, Jesse… — Meus dedos buscaram seus fios dourados, e seguraram sua cabeça contra os movimentos da sua língua contra a minha glande.

Parecia ter bastante experiência naquilo, e eu me sentia bem mais enferrujado. Não era mais virgem, e tive minha cota de aventuras durante a adolescência, porém, você era um verdadeiro furacão, devorava e engolia tudo o que passava; o que, aparentemente, incluía o meu gozo em seu interior.

— Hmm… — Gemi contra o corpo dele, e pressionei ainda mais os fios contra minha mão, puxando-os de leve enquanto movia sua cabeça contra mim.

Aos poucos a loucura aumentou, e eu não sabia mais a diferença de minha pele com a de Jesse. Quando gozei em sua boca, o líquido a preencheu e escorreu levemente de seus lábios, que apenas usou a língua para contê-los e engolir.

Arfando, eu não sabia mais o que fazer, ou o que sentir. Você, no entanto, se sentou na cama e começou a procurar suas roupas.

— Hm? — Quando recobrei parte da minha consciência, o vi tirar o celular do carregador e arrumar suas roupas em um montinho em cima da cama. — O quê…?

— Preciso ir.

— Já?

Nunca esquecerei da sua risada preciosa, volvendo olhos divertidos para mim.

— Nada contra dormir aqui, ruivinho, mas não posso aparecer no trabalho com a mesma roupa dois dias seguidos. Tenho aulas durante a semana, mesmo que não seja pra a sua turma. De qualquer forma, preciso voltar pra casa de vez em quando também.

Mas, antes de entrar no banheiro, soprou um beijo para mim.

— Mas posso voltar na segunda se sentir tanta minha falta assim.

Não sei o porquê esperava outra coisa, visto que ele não parecia ser alguém de se apegar a outrem tão facilmente. A pessoa que preferia meter meu pau em sua garganta a me beijar — era alguém bastante peculiar. Talvez eu não devesse me apegar. Talvez eu devesse acabar com tudo bem ali, e passar a ignorar as mensagens dele.

Mas, no fundo, seria impossível. Eu prometera, não foi? Que estaria sempre presente para quando ele precisasse. Poderia ligar a qualquer hora e a qualquer momento, eu estaria lá.

Eu que guardasse meu coração em um lugar seguro, porque a sensação que eu tinha desde o nosso encontro na ponte foi que você me arruinaria por completo, Jesse. Fosse para mim mesmo ou para qualquer outra pessoa, nosso encontro tinha toques de Destino escrito.

De uma forma ou de outra, eu estava perdido.

Me levantei e fui em sua direção, meu peito contra as suas costas. Seus ombros tremeram ante ao toque das minhas mãos geladas, e joguei um desejo contra a tatuagem de hortênsias em suas costas ao baixar meu olhar até elas. Volte mesmo, pedi.

— Hm? Vai tomar banho comigo?

Meu sorriso veio fácil, assim como suas mãos em minha bunda.

— O que eu não faço por você, Jesse?


Meu celular me acordou por causa da quantidade de vibrações. O cansaço em meus ossos tinha me alcançado enquanto eu andava pela rua das Margaridas, e assim que cheguei a meu quarto, me joguei na cama, cansado, suado e ainda cheirando a sexo, apagando por completo. Mas aquelas mensagens… aparentemente, alguém lembrou da minha existência.

Revirei os olhos ao checar o teor delas. A quantidade de erros gramaticais e o fato de serem três da manhã, denunciavam que Kurt chegara bêbado e com tesão em casa. Irônico ele só se lembrar de mim nessas horas, e não quando eu precisei dele no Halloween. Agora que tinha o ignorado a semana inteira, ele me chamava com insistência. Era o mesmo ciclo vicioso. Eu arranjava alguém, Kurt aparecia. Eu dava o pé na bunda dessa pessoa para ir atrás de Kurt, e ele misteriosamente arranjava outra pessoa e me dava um chá de sumiço. Aí eu voltava a procurar alguém, reiniciando o ciclo.

Kurt Durand era, para todos os efeitos, meu vizinho. Mesma situação familiar: pais separados, pai ficou com a casa, a mãe foi com o marido rico e o abandonou com o pai ausente. Isso lhe deu muito tempo livre, e uma janela com uma tubulação bem fixa. Somando isso com dois rapazes na puberdade, só podia dar um mar de confusões.

O quarto de Kurt sempre foi meu alento quando eu precisava escapar de algum problema em casa. Ele pintara as paredes de preto em um arroubo da adolescência, e agora mantinha a cor apenas por orgulho: nem mais emo, nem rock; eu sabia que a playlist do Spotify de Kurt continha artistas como Demi Lovato e Taylor Swift. Eu o conhecia tão bem quanto a palma da minha própria mão, portanto sabia o quão não confiável ele era.

— Completamente insuportável… — As mensagens não paravam de vir.

Kurt queria alguma coisa. Atualmente, ele só mandava mensagem quando precisava muito de mim. Ou queria uma foda, no entanto, desde o último boy dele, ele me evitava como a peste negra. O que era ruim para mim, porque os únicos lugares onde eu podia ter um pouco de refúgio costumavam ser o meu quarto ou o quarto dele. E até mesmo as minhas paredes me sufocavam aos poucos. Às vezes eu precisava do ar que ele me dava.

Só que ele vinha e ia quando queria. E eu tinha que respeitar isso.

Menos quando ele era um babaca de marca maior.

— Mas que merda… — eu disse, por fim, e peguei o celular da cômoda.

Foi então que notei o horário. Eu havia apagado por volta das sete da noite, com pensamentos nada santos sobre um certo ruivo e mãos calorosas; e se eram mais do que três da madrugada, eu era um duende. Apesar das poucas horas de sono, eu não me sentia nem um pouco cansado. Somado às evidências, eu soube de imediato o que Kurt queria àquela hora.

Suspirei ao ler o conteúdo das mensagens. Dava para notar, pelas palavras porcamente espaçadas e pelos erros de grafia, o quanto de álcool estava em seu sangue. Kurt só fodia ébrio. E não era lá uma foda muito carismática também. Atualmente, eu tinha uma opção melhor. As mãos de Alex ainda percorriam meu corpo, e eu estava completamente duro. Ao mesmo tempo, usar minhas mãos para lidar com o problema empalidecia ante a coisa real.

Dei de ombros, e fui calçar meus sapatos. Uma foda a mais poderia me ajudar a dormir. Kurt conseguira me acordar. Peguei o par jogado de qualquer jeito ao chão, e nem cogitei sair pela porta da frente. Não sabia se Nama estava em casa, mas eu tinha total certeza de que meu irmão estaria em seu quarto, e o caminho para a porta principal passava pelo dele. Dar de encontro com meu irmão gêmeo naquele estado seria a última gota para meu suicídio iminente.

— Tsc… — reclamei, e analisei a janela. Minha única opção.

Eu já tinha saído pela janela e voltado por ela algumas vezes. Nama já havia me dito para não fazer isso, no mesmo tom professoral que pedia para que eu desistisse da profissão de modelo vivo; e como a maioria das coisas que Nama falava, eu ignorei seu pedido. Era uma altura considerável, já que o meu quarto ficava no segundo andar. Mas quem disse que eu me importava se algum dia eu me esborrachasse no chão?

— Talvez fosse até melhor… — Ecoei os pensamentos mais profundos.

De qualquer modo, eu peguei meus tênis e os calcei, já que eles serviriam de apoio melhor na tubulação do que meus pés descalços ou com apenas de meias. A tubulação daquela casa era velha e rangia conforme eu descia por ela, fazendo com que meu coração desse um mini ataque cardíaco a cada vez que eu descesse; apenas xinguei Kurt por me forçar a sair, e uma vez no chão, eu corri para o final da rua.

O número doze da rua das Margaridas era uma parte calma do subúrbio. Era uma rua pacata, onde viviam famílias quebradas. A maioria era divorciada. No número treze vivia um rapaz de meia-idade cuja alcunha para todas as crianças era de bruxa, e no Halloween ele fazia questão de se vestir como tal. Ainda assim, o maior escândalo daquela rua ainda estava para acontecer.

Porque eu sabia, desde o dia em que nossos pais nos trouxeram envoltos em panos de hospital, ainda recém-nascidos, que eu não iria sobreviver ao número onze da rua das Margaridas.

A casa era sorumbática à noite. Às vezes, eu vinha observá-la. O quarto de Chase continuava lá, assim como o meu. Uma pequena luz azul vinha do quarto de Hayley, e eu sabia que era porque minha meia-irmã não conseguia dormir completamente no escuro, e precisava sempre de uma luz-guia para acalentar o sono. Eu me perguntava se aquela estrela solitária um dia se apagaria.

Fiquei alguns momentos observando a casa que um dia foi o meu lar. Eu sabia que poderia parecer estranho: afinal, eu era uma sombra de gente, de moletom e capuz, observando, às três da madrugada, uma casa de uma família de bem; mas não conseguia evitar. Era uma ânsia tão forte, de ter algo que não se podia obter, que me fechava a garganta.

Uma pequena estrela se acendeu.

E outra, mais forte.

As luzes da casa se acenderam.

— Merda — murmurei.

Corri em direção ao gramado do número doze, sabia o caminho a seguir para escapar.

— Jesse? — ouvi a voz sussurrada de Kurt. — Merda, o que você está fazendo?

— Abre a porta para mim! — sussurrei, urgente, de volta.

— Quê? Não! — Ele abriu a janela, e chamou-me com a mão. — Sobe por aqui!

— Cê tá louco?!

— Sobe!

A movimentação na casa onze ainda era muita, mas eu não tinha muito tempo, então fiz o que me foi mandado: comecei a escalar a tubulação da casa de Kurt, e quando passei por sua janela, ele me agarrou e me puxou com o peso do seu corpo para dentro do seu quarto.

O desgraçado estava rindo de se acabar, é claro.

— Caralho, Jesse… — Ele me puxou mais um pouco. — Cê devia ter visto sua cara.

— Seu filho da puta….

— Epa, epa, eu não xingo a Dona Nama, e você não xinga a Dona Karen. — Karen era a madrasta dele. A terceira que ficou. — Não tínhamos esse acordo?

— Você me manda um monte de mensagens a essa hora…

— Achei que esse era outro acordo nosso. — Como eu queria dar um soco naquele sorriso maldito.

— Você diz isso, mas me larga por outro boy quando dá na telha.

Kurt não disse nada, apenas me puxou para um beijo. Não correspondi, sentia o seu bafo de álcool, porém, me encaixei em seus braços; senti o conforto familiar de seu corpo, já que conhecia suas curvas muito bem. Ele não trajava nada mais do que uma cueca boxer preta, o que facilitava sentir sua ereção, já despontante, então eu sabia que ele não desistiria tão fácil.

Não que eu fosse a pessoa mais difícil do mundo…

— Vamos, Jesse. — Ele mordiscou meu lábio inferior, me provocando. — Eu sei que você quer.

E eu queria?

Bem, eu não… não queria.

Era melhor que nada.

— Seu idiota completo. — E foi o suficiente para que eu começasse a tirar meu moletom e, com ele, o resto das minhas roupas.


O toque dele sempre era rápido, eficiente, e em muitas ocasiões, indolor. Quase mecânico, com suas mãos frias que pareciam cobrir meu corpo inteiro com apenas o menor dos toques. Mas suas mãos eram largas e pareciam cobrir o meu corpo inteiro e, assim, me faziam esquecer que, um dia, eu estive prestes a queimar. Eu implodia por inteiro em seus braços e me desfazia, para, em seguida, me reconstruir aos poucos. E, no fim, eu emergia, vitorioso, um pouco mais suado, mas são.


— Quem é o da vez?

A fumaça do cigarro nos envolvia, enquanto meu corpo ainda se recuperava dos orgasmos. Kurt era fumante, lógico que era, apesar da mãe detestar aquele hábito. Logo, ele o escondia. Apenas ficava ali, na cama, depois de fodermos, enquanto o sol ameaçava nascer nas primeiras horas do dia. Estava com muita preguiça de me levantar e pegar as minhas roupas espalhadas, e com uma réstia de esperança de que repetiríamos o ato. Mas alas o tempo.

— Por que tem que ter um “da vez”?

— Você está com a mesma cara de peixe morto apaixonada de sempre.

— Não estou apaixonado.

— Conta outra.

Aquilo era encheção de saco suficiente. Eu não iria aturar mais uma crise de ciúmes por uma relação pela metade como aquela. Levantei-me de supetão, ignorando o cansaço do meu corpo, e comecei a procurar as minhas roupas.

— Jesse…

Ele segurou meu braço, me impedindo de sair da cama. Eu conhecia aquilo. Era um vício ao qual estava acostumado.

Só que era difícil recusar o calor quando você estava prestes a adentrar o frio do universo.

Virei-me para ele, esperando.

esperando, esperança, esperando

Cometas azuis e castanhos se encontraram. Colidiram. Um milhão de palavras não ditas.

— Tome cuidado com o buraco que você está se enfiando.

Mais uma decepção. Sentimentos e Kurt não combinavam.

— Hm.

Ele me soltou. Não me impediria de tomar as minhas decisões, nem me impediria de quebrar a cara. Porque, no fim, ele achava…

sabia

que eu voltaria para ele.

Ele se encostou de novo em seus travesseiros e tragou seu último cigarro.

— Ou ele se enfiando no seu buraco, é mais provável… — Riu.

Revirei os olhos.

— Vai se foder.

— Adoro quando você fica bravinho assim. Volte depois. Você sabe que só tem a mim, no final das contas.

Eu olhei para ele, ainda nu em cima de sua cama, e o corpo delgado que mostrava as marcas do que fizemos. Indeléveis. Inegáveis. Inexistentes.

Eu estava preso naquele ciclo.

Pulei a janela.


A volta para a casa nas primeiras horas da manhã foi bem mais calma. As pessoas começavam a sair para o trabalho, metidas em seus casacos e bufando contra seus cachecóis enquanto se agarravam fortemente às suas canecas térmicas de café; quando não se agarravam às coleiras móveis de seus cachorros. O clima estava frio, mas não o suficiente para que nevasse. Uma chuva ameaçava cair, e se eu fosse rápido o suficiente, conseguiria voltar sem maiores problemas.

Foi sôfrego que cheguei em casa, depois de tamanho exercício. Tinha gana de ir ao meu quarto e tomar banho, me livrar do suor acumulado da noite e do sexo, mas eu iria apenas acordar a casa se fosse ao chuveiro naquele horário. E, bem, não era contra acordar meu irmão e o namorado se fosse necessário.

O problema era…

Abri a porta da frente e espiei. O terreno parecia limpo. Tirei meus sapatos e, com cuidado, subi de novo as escadas e fui em direção ao meu quarto. O escuro me convidou a entrar, e encontrei tudo como estava na noite anterior. Abandonado, vazio e oco. Apenas tirei minhas roupas, ficando de cuecas, e me joguei na minha cama.

Esperava que o sono viesse, já que o cansaço obliterava meu corpo e o esmagava em pedacinhos pequenos em que sentia os tremores, mas minha mente permanecia desperta e culpava cada centímetro de pele pelas decisões tomadas; e por isso entrava no ciclo em que me mantinha acordado.

Eu não deveria ter ido.

E teria feito diferença se eu não tivesse ido?

Eu não deveria ter dado.

Eu estava fodido.

Meio que literalmente.

Passei uma mão por meu estômago, pensando. E pensando. A mão de Alex era tão maior do que a de Kurt, e bem mais gentil. Kurt tomava o que era dele. Alex, por desconhecer, por desbravar, pedia por permissão. Era uma diferença importante.

Percebi então que parte do meu vazio era fome, e já que não conseguia descansar minha mente… levantei-me e coloquei uma camisa limpa; desci para o primeiro andar, pronto para invadir a cozinha e encarar a geladeira, quando…

O tilintar da louça.

Aquele som tão conhecido, como o de passar de saltos altos em pisos de cerâmica, demonstrava que eu não estava sozinho. Meu coração pesou. Minha garganta travou com o peso de palavras que um dia queriam ser ditas, de conversas inteiras travadas no fundo da mente durante banhos inteiros.

Minha mão congelou ao tocar a maçaneta da porta enquanto a imagem de Nama tomando café na sua xícara dourada apunhalava meu imo.

Seus olhos azuis penetraram-me.

— Bom dia — ela comandou, ao colocar a xícara no lugar.

Torradas integrais com abacate amassado. Café sem açúcar, uma colher de creme. A mesma xícara dourada que pertenceu à minha bisavó. O mesmo ritual matutino, o cabelo preso alto em um coque para facilitar o trabalho de cortar pessoas, sem manchar o uniforme branco.

Nama Bennett era uma pessoa. Um ser tão diferente naquele universo que havia sido colocado na minha órbita, e, bem ali, ela havia gerado uma supernova. Ela era a criadora de algo, e, pelos poderes que ela continha, poderia ser considerado um Deus. Uma geradora de Big Bangs, apenas com o poder de palavras.

— Bom dia — eu disse, baixinho, não podia mais me esconder atrás da porta como fazia quando era criança.

Corri até a geladeira e coloquei mais uma barreira física entre nós; o frio da geladeira não se comparava com a gelidez de seu olhar.

Minha mãe continuou a comer, e eu, a encarar o interior, sem nem mesmo olhar, apenas pensando. Maquinando. Estar na cozinha ao mesmo tempo era um martírio. Gostaria de ter poderes alienígenas para poder entender o que ela pensava. Todas as vezes que falávamos era uma chuva de meteoros.

— Você vai trabalhar hoje?

Fiquei em silêncio, cuidadosamente escolhendo as palavras. Era uma armadilha. Nada vinha de graça naquela casa, nem a primeira refeição do dia. Nem uma pequena pergunta como aquela era desprovida de significado.

— Sim — só pude confirmar.

— Você já viu o que eu mandei para você?

Fechei a geladeira sem pegar nada.

Fui até o filtro e peguei um copo de água. Meu celular, na minha mão, trazia as provas cabíveis do crime: os links das bolsas para universidades, os cursos de faculdades diversas; todas as mensagens vistas, mas não lidas.

— Dei uma olhada por cima.

— Ah, Jesse…

O tilintar da louça e os sapatos de salto alto denunciavam que ela tinha terminado a conversa antes mesmo de começá-la. Abaixei o olhar e tomei minha água. Se mantivesse a boca ocupada, não precisaria falar. E tinha o bônus de engolir as verdadeiras palavras que eu queria dizer.

— Você sabe que as inscrições para o semestre de inverno estão acabando, não sabe? O que está te incomodando tanto? — Ela veio para o meu lado, no balcão, e trazia os pratos para lavar. — Qualquer curso serve, desde que você escolha. Você sabe que dinheiro não é um problema. Temos recursos, e você pode aplicar para bolsas…

— Eu sei. — Minha voz saiu esganada. — Eu sei. Eu só não tenho interesse por enquanto. O trabalho toma todo o meu tempo.

O suspiro atingiu a decepção em seu olhar.

— Você deveria arranjar um outro emprego, amor. Tem outro nome pra quem tira as roupas para sobreviver.

O que responder àquilo? Eu apenas assenti. Nama Bennett se aproximou de mim, e me deu um beijo cálido na testa.

— Tome um banho antes de sair. Tenho que ir. Tenho um plantão daqueles.

Não sei quanto tempo fiquei ali, encarando as ondas da água em meu copo, enquanto o eco dos sapatos de salto dela se distanciavam dentro de mim. A explosão mais forte foi do copo se partindo; e os cacos espalhados refletiram não somente o reflexo quebrado da minha alma, mas também o vazio interior daquela casa.

Um dos cacos passeou perigosamente sobre peles, frio e cósmico.

Meu celular vibrou, o alarme de despertar.

— Droga.

Verifiquei o celular. Tinham duas mensagens. Uma de Kurt, é claro. Essa eu poderia ignorar.

A outra…

Alex: meu modelo preferido, que tipo de café você gosta?

Alex: me avise quando você estiver chegando.

E eu não pude deixar de sorrir. Meu primeiro trabalho naquela manhã seria na turma dele; e apesar de não saber exatamente o que ele pretendia com aquela mensagem, era muito revigorante todas as vezes que eu recebia algo dele. Minhas forças se renovavam. Não sabia o que estava acontecendo entre a gente, mas Alex Morris…

Alex Morris não era um rapaz de se jogar fora, não.

Eu juntei os cacos e fui em direção ao meu quarto, pronto para mais um dia.


O café era novidade.

— Eu não avisei a você que iria modelar.

— Eu tenho meus meios. — O sorriso dele era contagiante.

Eu esfreguei os pulsos, o band-aid coçava terrivelmente. O olhar de Alex foi direto para minhas mãos.

— O que aconteceu?

— Um acidente. Nada sério. — Dei um gole no café, ainda estava bem quente.

— Sei. — Alex ergueu uma meia sobrancelha, enquanto Dave o olhava de seu caderno.

— Vocês são muito nojentos.

— Ah, vai me dizer que você e Samuca não trocam mensagens super apaixonadas?

— Não…! Só falamos sobre livros. Não é nada impuro…

— Mas você gostaria que fosse, né?

Dave corou e se levantou.

— Vou para minha aula…!

O cavaleiro em sua armadura brilhante se ergueu, a mochila em punho, e eu apenas ergui uma sobrancelha.

Embora não fosse comum que Dave tomasse a iniciativa para ir para qualquer lugar, era visível que Alex estava ali, pronto para acompanhá-lo, como um guarda-costas a defender uma princesa de um país estrangeiro. Era muito estranho imaginar um adulto crescido como Dave com roupas de renda e babados, porque o estilo de Dave era, obviamente, voltado para o punk rock, especialmente com o cabelo pintado de lavanda e raspado dos lados. O que tornava toda a coisa da agorafobia muito curiosa.

Eu queria saber mais sobre aquilo?

Não necessariamente.

Não era da minha conta. Estava interessado em Alex, e não no amiguinho com defeitos dele. Alex podia brincar de salvador o quanto quisesse, desde que me fodesse no final do dia. E quando eu me cansasse daquilo, eu sempre tinha a quem voltar.

Ao menos, era o que eu me dizia. Mas meus ombros ficaram um pouco menos tensos quando Dave fez Alex sentar-se de novo ao meu lado, e o calor de sua jaqueta invadiu a minha.

 — Fique aí com seu amorzinho.

— Não estamos namorando, Dave.

Ele apenas deu um sorriso, com o vapor escapando de sua boca, e saiu olhando intensamente para o telefone enquanto caminhava pelo campo congelado, onde a fina neve finalmente tinha feito sua cama; e eu fiquei a encarar Alex ao meu lado, com meu café no copo térmico a esquentar as minhas mãos.

— Então… — comecei.

— Está frio, não está?

— Sim. Vi que vem uma frente fria por aí. Talvez a primeira nevasca do ano. Não gostaria de me encontrar fora de alguns braços quando acontecesse.

— Gosta de braços quentinhos, hm? — Alex cantarolou, e os dedos tocaram as beiradas do muro. — Mais do que de café?

— Alex… — Tentei permanecer sério, no entanto, não conseguia manter uma fronte com ele.

Era como se ele conseguisse penetrar todas as barreiras que eu impusesse. Em um pigarro, eu me levantei da mureta em que nos encontrávamos. 

— Temos de ir. O modelo não pode se atrasar para a aula.

— É verdade. Você sempre é muito correto, mas… — Alex me puxou pela cintura, e senti seus braços me envolverem. Droga. O corpo dele todo era muito caloroso. Era quase uma covardia. — Só mais cinco minutos, está bem?

— Você está jogando sujo… — fiz um muxoxo, mas não consegui não ceder. Abracei-o de volta.

Ele volveu os olhos verdes, brilhantes e sapecas, em minha direção.

— Ah, eu nunca prometi um jogo limpo, meu caro Jesse.

Puta merda.

Era difícil não se apaixonar por um cara daqueles.

Mas eu não podia.

Podia…?


A série de mensagens apareceram no meio da aula, portanto, eu só a vi quando estava terminando de me arrumar.

Chase: Você vai voltar que horas para casa hoje?

Chase: Mamãe quer conversar com você.

Sabia exatamente o tipo de conversa que aquilo iria render. Mais links que eu não leria. Acompanhados de um sermão que eu não estava preparado psicologicamente para ter, não depois de uma manhã e uma noite daquelas.

Palavras e cenas travaram na minha garganta.

Coloquei a jaqueta, sem saber como responder à mensagem, quando senti uma cutucada nas costelas. Virei-me, soltando uma respiração presa, pronto para ver o sorriso largo de Alex e sentir a vida melhorar um pouco, mas não era ele quem estava ali atrás de mim. Era um de seus colegas, um dos mais tediosos, cujo nome eu desconhecia. Na verdade, eu mal sabia o nome de todos os alunos para qual eu modelava, porque eu não me interessava. Eu tinha dificuldades em gravar o nome dos professores, quanto mais dos outros em sala. Portanto, aquele tipinho, com os cabelos recém cortados morenos e os óculos de grau falsos, apenas me despertava desconfiança. Porque eu sabia exatamente o que estava por detrás deles, por detrás do sorrisinho sem graça.

Um convite.

— Sr. Modelo…

— Jesse — disse, curto. — O que você deseja?

— Você é muito bonito.

Ah, a bajulação.

De certa forma, eu vivia disso. Não era o primeiro homem a chegar em mim depois de uma aula, especialmente uma em que eu me sentira empolgado o suficiente, após o abraço de Alex, e dera o máximo de mim. Eu queria me mostrar para Alex, porém, acabara atraindo mais olhares. Isso, obviamente, não era um problema.

Ele estendeu a mão para mim, com um papelzinho amassado.

Dejá vù?

— Se te interessar…

— Ele não está interessado. — Não fui eu a responder, e sim o vulto gigante de Alex, que apareceu como um raio assim que o outro ameaçou seu território.

Eu estava surpreso, porque a última vez que colocara os olhos nele, ele estava do outro lado da sala; falava alguma coisa com uma colega de classe enquanto arrumava seus materiais, e provavelmente estava me esperando terminar de me arrumar para que pudéssemos buscar Dave depois de sua aula de literatura. Não achava que ele fizesse o tipo ciumento.

O cara, apesar de ser mais alto do que eu, certamente não se comparava com Alex. Ele recolheu os ombros, mesmo eu já tendo guardado o número de telefone. Olhou de Alex para mim, e apenas sorriu de escárnio.

— Se você algum dia se cansar dele, e quiser uma sessão privada de desenho…

— Você não pode pagar o preço dele — Alex repetiu, e se colocou entre nós. Tinha vontade de suprimir o riso. Era a primeira vez que um dos meus “casos” se importava tanto. — Acho melhor você ir embora.

Quando o outro finalmente se foi, eu fechei o zíper da minha jaqueta.

— Não sabia que você era assim.

— Assim, como? — Alex se virou para mim. — Não gosto dele.

— Ciumento.

— Não são ciúmes. — Ele bufou, mas dava para ver que corava um pouco. Fofo. — O cara não bate bem da bola. Anote o número dele pra bloquear da sua agenda. Não sei se ele vai desistir assim tão fácil…

Peguei meu celular mais uma vez, mas a mensagem estava lá, escancarada no visor.

Eu não poderia escapar.

Chase: Jesse? Você vai voltar para casa hoje?

— Posso ir pra a sua casa hoje?

Alex sorriu, e passou os braços pelos meus ombros, e eu pude, enfim, respirar.


— Você não é de responder muitas mensagens, não é mesmo?

— Não sei do que está falando. Não conversamos o tempo todo pelo celular?

— As minhas você responde. As de outras pessoas…

Apesar de tudo, eu sorri. O calor daquela estufa que Alex chamava de casa era suficiente para derreter até a mais fria parede de gelo que eu pudesse erguer para proteger o meu coração. Eu não conseguia não ceder quanto aos desejos dele de ser seu modelo, por isso estava ali, nu, com apenas algumas cobertas a esconder minhas intimidades; mas até mesmo meu tédio tinha alguns limites, e por isso meu smartphone tinha encontrado seu caminho de volta aos meus dedos. Alex estava à minha frente, também com poucas roupas, um pescoço marcado por meus lábios; e um caderno de desenho que, aos poucos, se preenchia em seu colo.

— As outras pessoas não importam tanto quanto você.

— E, no entanto, o senhorzinho não larga o celular.

Virei-me na cama e expus minha bela bunda no processo, queria dar um fim àquela discussão com um pouco de sedução de minha parte.

— Bem, foi você quem me deixou sozinho nesta cama. Está tão frio e escuro…

Alex continuou a desenhar, mas eu sabia que o afetava. Alex era uma pessoa simples de se entender. Ao menos, era o que parecia.

— Ora, ora, estamos jogando sujo?

— Aprendi com o melhor mestre no assunto. Agora pare de me enrolar, e venha me “enrolar” de verdade.

Ele revirou os olhos, no entanto, pelo canto de olho, pude vê-lo colocar o caderno em cima da mesinha e ir em direção da cama. Ele pulou em cima de mim, e meu coração começou a acelerar.

— Você é muito exigente, Sr. Bennett.

— Apenas gostaria de um beijo, Sr. Morris. — Eu sorri, o provocando. Alex pareceu surpreso, e um sorriso em seu rosto, a centímetros do meu, quando tapei sua boca com a mão. — Não disse onde queria o beijo, Sr. Morris.

Alex parou por um momento, até que a compreensão alcançasse os olhos verdes e as meia-sobrancelhas unidas em um ponto se ergueram em surpresa. Um sorriso de escárnio surgiu debaixo da tatuagem de ás de espadas.

— Seu desejo é meu comando, meu caro Jesse.

E enquanto ele se abaixava para pegar meu membro riste, eu dei uma última olhada na mensagem flutuante.

Chase: Onde você está?

E ao envolver meu membro por inteiro com a boca, o celular ficou decididamente esquecido.


Eram quase onze da noite, mas as mensagens ainda vinham. Alex estava abraçado nas minhas costas na cama, quase cochilando, quando ele finalmente se irritou. Estava me perguntando quanto a paciência dele duraria.

— Tá, de quem são essas mensagens todas? É do seu namorado?

Eu soltei uma risada fraca.

— Eu não namoro ninguém, sr. Morris.

— Sua mãe então. — O agarro dele em minha cintura se fechou ainda mais contra minha pele, marcando-a mais do que seus lábios fizeram antes.

— Isso são ciúmes, sr. Morris?

— Jesse, por favor.

Mas era tudo que eu precisava para me virar.

— E se for um outro homem? O que você acharia?

A expressão mau encarada dele me disse tudo, e eu apenas ri.

— Tão bonitinho com ciúmes…

— Vá se foder, Jesse.

— Bem, espero que você me foda, sr. Morris. — Coloquei as mãos em seu peito, a provocação foi das pontas dos meus dedos para a curva dos meus lábios.

— Alex.

— Hm?

— Me chame de Alex, Jesse.

Eu suspirei, e aceitei que tinha ido longe demais. Voltei a me virar, e encarei o celular que acendia com mais uma mensagem.

— É de fato outro homem. — Dei de ombros. — Chase, meu irmão gêmeo.

— É? Ele está preocupado com algo?

— Eu diria que ele tem mais coisas pra se preocupar do que comigo.

Ficamos em silêncio, o sono vinha fácil. Fechei os olhos, e antes que pudesse me entregar completamente ao buraco negro, ouvi algo.

— Eu não tenho irmãos.

Estava prestes a cerrar os olhos, quando senti o bafo quente de Alex em meus ouvidos. Achava que ele já tinha dormido, mas as palavras dele me surpreenderam tanto que achei que saíram de um sonho.

— E…?

Ele riu e beijou as minhas costas.

— Eu não tenho irmãos. O mais próximo de uma família que eu tenho, atualmente, é Dave e a mãe, Kate.

Movi-me contra ele na cama. O quarto escuro caía em silêncio, e devia ser muito tarde da noite; contudo, apesar da nevasca lá fora, eu não sentia frio, porque o corpo quente de Alex envolvia minhas costas. Pensei se deveria fingir ter pegado no sono, mas não conseguiria ignorar Alex.

— Seus pais morreram?

— Minha mãe sim. Meu pai, às vezes, esqueço que não.

Pesado. Era com aquele peso nos ombros que Alex vivia.

— Por isso esse palácio? — Brinquei.

— As coisas que se fazem quando se é expulso de casa… esse é o único lugar que minha bolsa da faculdade pode pagar.

Você é doente.

As memórias cortaram minha mente e o sangue escorreu dos meus olhos, marejando-os. Eu me lembrava. Agarrei-me à Alex, e tentei desviar o assunto.

— Seu pai não curtia gays?

— Não é como se ele fosse homofóbico… eu acho que ele cansou de ter a paciência testada. E eu testei. A paciência dele, digo. — Alex riu, e por causa da distância, todo sopro passava por minha orelha, aquecendo-a, animando-a. — Minhas amizades não eram da melhor estirpe. Tem um motivo pra eu ter uma tatuagem no rosto.

— Confesso que eu tinha curiosidade sobre isso.

— E, no entanto, não perguntou.

— Não achei que fosse fazer diferença.

— Faz toda.

Ficamos em silêncio por tanto tempo que achei que ele tivesse dormido, mas não pude me conter.

— Por que você tem uma tatuagem no rosto?

— Achei que não fosse perguntar.

— Estou perguntando.

— Eu sei. Fico feliz. — E eu não sabia o porquê de ele ficar feliz apenas com aquilo, porém, Alex era um bobo. — Confesso que é uma história meio embaraçosa. Envolve um ex e bebidas.

— Ah, acho que aí já não quero saber mais.

A risada de Alex ecoou alta pelo pequeno apartamento e dentro de mim. Eu me senti pequeno e cheio. Virei-me no abraço e apertei as bochechas dele.

— Vai falar de ex na minha frente?

— Estava falando nas suas costas…

Fiz um muxoxo.

— Isso são ciúmes, Jesse?

— Alex Morris…

— Jesse Bennett… — O toque dele na minha franja, para que ele pudesse me encarar. Os olhos verdes faiscavam no escuro, a parca luz os transformava em ouro. — Você é muito especial.

Aquilo me desarmou por completo. Encostei minha cabeça em seu ombro, e me deixei embalar por um sentimento ainda sem nome, mas aquecido pelo calor daquele apartamento; eu não sentia mais frio, nem solidão.


— E onde Dave entra nisso?

Uma xícara de café expresso, quentinha, cobertas sobre ombros. Eu passei a semana na casa de Alex — voltava brevemente para casa, em um horário que sabia que os outros dois não estariam, para pegar algumas roupas; apesar das camisas de Alex, ao serem usadas por mim serem vestidos, eu as usava do mesmo jeito —; mesmo com o trabalho, eu sempre encontrava com Alex quando suas aulas acabavam, e ia junto para casa dele. Claro, sempre havia o desvio de caminho em direção à casa de Dave, para entregá-lo a sua mãe. Dave pareceu ter se acostumado comigo, porque se abria mais, em especial em pedir conselhos sobre o que falar para Samuel. Era fofo.

De um jeito irritante, mas fofo.

O sábado amanhecia com uma promessa. Lábios encontravam o líquido escuro e, agora, perguntas escapavam deles. Alex preparava nosso café da manhã, enquanto eu me encontrava curioso e cheio de dúvidas.

— Dave é meu amigo de infância. Acho que já mencionei isso?

— Eu tenho amigos de infância, e certamente não ajo assim com eles.

Claro, dormir com amigos de infância era um passo além, mas Kurt era diferente.

Alex riu enquanto quebrava ovos na cozinha apertada.

— Sabe, eu não gostava de Dave no começo. Eu tinha doze anos quando o conheci, quando a família dele se mudou para a nossa ruazinha. Nossa gangue não o aprovou de início. Muito mirrado. Muito estranho. Sempre mais interessado em ter um livro em mãos do que brincar de skate ou patins com a gente. Era bem mais novo também.

— Então ele não se encaixava?

— Nem um pouco. Mas Kate… a mãe dele, me pagava uma grana pra ser babá. E apesar de chatinho no início, ele logo conseguiu crescer para ser uma criança mais “normal”. Ele é muito inteligente, e tem um humor muito ácido.

Sorvi de meu café, e olhei para fora. A nevasca tinha deixado uma camada fina de neve, que agora se derretia pelo calor do dia. A previsão do tempo não parecia melhorar em nada, e uma geada estava programada para aquela noite. Era um sinal para permanecermos na cama, especialmente por não ter nada para fazer e poder ficar debaixo das cobertas com alguém. Era a primeira vez que eu tinha alguém para fazer aquilo. Normalmente, eu fugia nas primeiras horas da manhã, e retornava, na caminhada da vergonha, para casa.

Era bom, o que quer que isso fosse.

— Bem, fui babá de Dave até…

— Até?

Ele ficou calado por um instante, como se ponderando a resposta. As memórias eram visíveis em seu semblante. Ele inspirou mais uma vez e passou a mão pelos cabelos, prendendo eles com o próprio comprimento, o coque frouxo sobre sua nuca.

— Eu contei que tinha uma gangue. Éramos um bando de adolescentes estúpidos. Alguns eram mais velhos, mas todos ainda na escola. Foi um amigo de Iza que nos chamou pra participar dela. Roubar bebida e se meter em confusão, nada melhor para um adolescente com a mente perturbada. Não gosto de admitir, mas saíamos por aí de madrugada aprontando pela cidade, pixando casas ou roubando alguma bebida. Ao mesmo tempo, era babá de Dave, é apesar de me zoarem sobre isso, eu realmente gostava dele. Então eu sempre contava das nossas travessuras.

Eu parei, quieto, meio chocado com a informação. Claro que eu desconfiava sobre o passado de Alex, por causa de sua tatuagem e por seus comentários anteriores. Eu não me metia com aquilo, mas conseguia empatizar um pouco. Minhas costas arderam um pouco. Assenti, Alex continuava a cozinhar, mexia ovos, acrescentou temperos, e colocou manteiga na frigideira.

a culpa é sua

— Acontece que Dave começou a se empolgar com isso. Queria me acompanhar nas saídas. Além de um mico, né, porque eu seria zoado infinitamente se soubessem que eu andava com pirralho, tinha o agravante que Iza completamente o detestava. Depois descobri serem ciúmes. Enfim. Lembro que era um domingo de verão quando a gente estava fumando e bebendo quando Dave apareceu na nossa caverninha.

Ergui o olhar, na tentativa de definir o que Alex estava pensando. Ele continuava a cozinhar, parecia bem ajustado. Normal. Como se contasse a tragédia de outra pessoa.

Eu me levantei e arrastei os lençóis até a cozinha.

— Ele queria se juntar. Ele queria muito se juntar. Disse que faria qualquer coisa. Os outros meninos só riram. Eu não sabia o que fazer. Inventaram um desafio na hora e…

Sua respiração passou, enquanto os pensamentos vinham. O fio que ligava os dois era ao mesmo tempo muito frágil e muito comprido. Anos de amizade… mas…

— Por que você se sente tão culpado?

Ele me encarou com um sorriso, mas seus olhos estavam cheios de tristeza. Eu me recordava bem desse tipo de olhar. Chase o oferecera para mim no dia que me esperou para conversar. Aquilo era… uma sensação conhecida e sufocante. Minhas costas arderam mais um pouco. O pânico e o desespero. Não querer desapontar nenhum dos lados. Com os escombros de suas relações ao seu redor, o que Alex teria pensado?

Teria amaldiçoado Deus?

Teria pedido por sua Graças?

Por um milagre?

— Foi estúpido. Uma aposta estúpida. Ele… tentou provar o quanto queria. No final, fomos parar no hospital e fiquei de castigo o resto da vida. Acho que ainda estou, se for fazer a conta direitinho.

Deixei a caneca em cima do balcão, e envolvi os braços em sua cintura, e encostei minha cabeça em suas costas nuas. Não conseguia ver sua expressão.

— Não consigo cozinhar desse jeito, Jesse.

Fiquei em silêncio, apenas o abraçando. Meus pensamentos estavam confusos demais para serem coesos, mas Alex… Alex riu e apertou levemente minhas mãos, sem desviar muito a atenção da frigideira, que chiava com nossas omeletes. O cheiro de ovo com manteiga, orégano e queijo enchiam aquele pequeno apartamento; e era com aquele pequeno gosto de casa que eu percebia que julgara Dave por muitas coisas. Talvez até mesmo por ciúmes demais, pela proximidade com Alex. Era óbvio que os dois se gostavam, mas Alex dava claros sinais de que, o que quer estivesse rolando entre nós, era mais importante. Que era ali que ele queria estar.

E, pela primeira vez, eu também queria estar ali.

— Queria conhecer mais do Dave também.

Alex se virou para mim, e beijou a minha testa.

— Ele ficaria feliz em conhecer você mais, acho. Ele é muito solitário, gostaria de mais um amigo.

O sorriso de Alex era mais precioso, então talvez… talvez valesse fazer mais um esforço.

— Podemos sair para algum lugar então.

— Ah. Claro, claro.

— Não gostou da ideia?

— Não é que eu não tenha gostado. É que…

O cheiro de algo queimando nos distraiu.

— A omelete! — ele falou, enquanto eu ria e o largava para que ele pudesse salvar nosso café da manhã.

— Você vai comer essa.

— Oras, você quem me distraiu…!

— Eu sou o convidado! Tenho que comer do melhor prato!

Alex riu de canto de boca.

— Eu quem comi do melhor prato ontem se bem me lembro.

— Como você fala uma coisa dessas com o rosto sério…! Tudo bem, eu como! — Era muito bom ver como ele ficava feliz com tão pouco. Era quase um crime.

— Não precisa, eu como.

— Vamos dividir o fardo então. Os dois comemos.

Alex bagunçou meus cabelos, e armamos nossa mesa improvisada na cama. Não havia muito espaço naquele apartamento, portanto Alex revezava entre comer no balcão da cozinha ou comer na cama. “Nunca me importei de comer na cama,” ele me dissera antes. “E, francamente, estou na idade de não me importar com muitas frescuras. Eu que arrumo mesmo.”

Ou não arrumava, como era o caso.

— Quanto a sair pra algum lugar, eu acho que seria difícil. — Alex comeu o pedaço da omelete queimada primeiro. — Dave é uma pessoa… complicada para se levar para lugares novos.

Eu coloquei um pouco de xarope de bordo no meu prato.

— Por causa do problema dele?

— Exato. São semanas até que ele se acostume a sair para um local público. Aquele café onde você nos encontrou foi um exercício de paciência. Estamos indo lá desde o início do semestre passado.

— Hm. — Era realmente um problema. Mastiguei um pouco, enquanto terminava o prato. Uma ideia não muito boa começava a se formar. — E aqui é um pouco apertado para nós três, mal cabe os dois de nós.

— E, infelizmente, não tem muito o que fazer.

— Bem, tem o que fazer. Só acho que Dave não gostaria de entrar no meio de nós.

Alex tossiu, se engasgando com café.

— Não, por favor, nem levante essa possibilidade.

Continuei revirando minha omelete. Meu celular tinha ficado quieto a manhã toda, porém… talvez fosse uma má ideia. Era uma má ideia. Mas, às vezes, você deseja que as coisas sejam normais. Um único dia normal.

— Acho que não teriam tantos problemas se vocês fossem lá em casa…

— Oh? Vai me apresentar aos seus pais?

— Casa da minha mãe. Meu pai, assim como o seu, não está na figura.

Alex apenas assentiu.

— Família complicada?

— Você não faz nem ideia. — A risada que saiu de mim foi nervosa. — Mas minha mãe deve estar de plantão. Posso pedir ao meu irmão para que não ocupe a TV da sala e me empreste o PS5 e o Xbox.

— Vocês têm… os consoles de última geração?

Dei de ombros.

— O trabalho de modelo paga bem.

Alex me encarou, deixou o prato pela metade em cima da cama, e foi em direção à cabeceira de mesa pegando seu celular. Sem entender, ele iniciou uma chamada, e foi respondido de imediato.

O rosto confuso de Dave copiava a minha pergunta.

— O quê…

— Temos um lugar a invadir hoje.

E com o dedo em riste, apontou para meu peito nu.

— Leve-nos para sua base, seu bastardo riquinho!

capítulo 7

desalento

O caminho para a minha “base” consistia em uma pequena caminhada, que se iniciou do ponto de ônibus em frente da encruzilhada da casa de Dave — que, por insistência deste, pediu para ser acompanhado até a minha residência —; então o trajeto usual de ônibus. E, naquela calçada, me pareceu muito diferente daquela caminhada da vergonha da madrugada, visto que foi preenchido por muita conversa e risadas, as quais eu não estava acostumado.

A diferença era significativa, e eu não saberia dizer se eu desgostava. Os músculos da minha face doíam um pouco de rir das piadas e tiradas que somente um par como Alex e Dave poderiam fazer, tamanha a intimidade entre eles. Era óbvio que os dois se gostavam bastante. E aquilo alimentava o pequeno buraco negro em meu coração, aquela pequena voz que às vezes gritava que tudo estava errado, que eu não pertencia ali.

Ciúmes, Jesse?

Mas então, Alex segurava a minha mão discretamente, e eu me encaixava em sua órbita.

Quando chegamos no ponto de saída, o céu cinzento anunciava que não tínhamos visto o final da frente fria.

— O inverno está chegando — Dave anunciou, sombriamente.

— Você nem gosta dessa série.

— Eu tenho que admitir que é uma frase marcante, e muito relevante para o nosso momento atual.

— Dave, o inverno vem uma vez a cada ano. Eu acho que você é grandinho o suficiente pra saber disso já.

Dave bufou e se abraçou. Ele vestia mangas compridas, com uma mancha gráfica, que já se desgastava pelo tempo. Leggings e botas completavam o look, mas talvez não tivesse sido a melhor escolha para aquele momento do ano. Alex estava lindo, é claro. Era difícil aquele homem parecer menos do que maravilhoso. Estava com um casaco de couro, jeans e botas de combate. Ele parecia bastante confortável, e eu queria beijá-lo naquele momento, no entanto, estávamos no meio da rua das Margaridas, e aquilo significava muito perigo.

— Vamos — urgi, e seguimos andando até a casa número vinte e quatro; e foi com alguma surpresa que os dois pararam atrás de mim ao ver o imóvel.

— Uau…

— O que foi?

— Jesse, você não falou que você era herdeiro… — Alex assoviou enquanto admirava a casa. — Isso aqui é realmente o sonho americano, a casa grande de cerca branca que cabe dois filhos e meio.

Dave riu.

— Alex, você realmente escolheu bem o seu par. Vai fazer um bom casamento.

Nós dois coramos, se fosse possível Alex ficar ainda mais vermelho. Eu apenas peguei as minhas chaves e enfiei-as nas fechaduras, apressado, queria terminar aquele momento de embaraço.

A casa me cumprimentou com seu silêncio acolhedor. A verdade é que eu me sentia mais em casa quando não havia ninguém lá, e isso era raro, porque, devido aos horários da faculdade do meu irmão, era quase impossível não o ver ali com o namorado. Ou quase-namorado, que seja. Mas, aparentemente, eu tirara o passe livre da prisão, e tinha a casa inteira para mim.

Que maravilha.

— Sejam bem-vindos… — falei para os meus convidados, enquanto tirava os sapatos, e os coloquei na sapateira esperando que eles fizessem o mesmo.

Dave não esperou que Alex terminasse de tirar os sapatos para começar a explorar a casa.

— Uau! É tudo tão grande!

— É uma casa comum por aqui. É como se o molde fosse o mesmo e eles entregassem a mesma mercadoria.

— Mesmo assim, é incrível! Espaçosa, e… olha essa cozinha, Alex! Conceito aberto!!

Enquanto Dave corria para explorar a cozinha, Alex riu ao meu lado e aproveitou para chamar a minha atenção.

— Peço desculpas por ele. Quando se empolga com algo…

— Eu sei, é maníaco.

— Um pouco. — Olhei para o lado. Dave já tinha sumido. Para onde ele havia ido? — Espera, eu queria fazer algo…

— O quê?

Eu me virei e senti o toque dele em meu queixo. Sem falar mais nada, ele se curvou, aproveitando da nossa diferença de altura devido ao pequeno andar, e me beijou. No começo, não foi mais nada que um pequeno prensar de lábios, mas quando ele tentou se afastar, meus braços envolveram seu pescoço e, com minhas mãos em sua nuca, explorei seus cabelos e o puxei para mim; eu diminuí a distância entre nós, quase inexistente àquele ponto. Sua língua tocou o interior da minha boca, e fiquei muito grato naquele pequeno embate, me perdi mais uma vez em sua galáxia. Meus olhos viam apenas estrelas esverdeadas atrás de meus cílios.

Eu não era homem de deixar oportunidades passarem.

— Olá — ele disse, e me olhou nos olhos, corado, ainda comigo nos braços.

— Bem-vindo à minha casa, Alex Morris. — Eu ri.

— Estou sendo bem recebido, sim, Jesse Bennett. — Ele acariciou meu rosto.

Ouvimos um pigarro.

— Vocês vão ficar se agarrando aí, ou o Jesse vai nos apresentar ao resto da casa?

Eu preferia muito mais ficar me agarrando em cada cômodo da casa com o Alex, mas me resignei, dei um último beijo no Alex, e me afastei.

Em algum lugar de minha mente ficou registrado que aquele era meu primeiro — e segundo — beijo com Alex.

— Alex, você pode começar a preparar a pipoca doce que nós compramos? Venha, não é muito difícil, vou deixar as panelas em cima do fogão…

Fomos até a cozinha, e expliquei rapidamente como o fogão funcionava.

— Dave, já que você quer ver o resto dos quartos, você pode me ajudar a pegar os consoles no andar de cima.

— Argh, por que o trabalho braçal fica todo pra mim?

Alex riu.

— Você fala que o trabalho braçal fica com você porque nunca fez caramelo, meu caro. — Enquanto saíamos da cozinha, Dave deu língua para ele.

— Eu tenho você como meu escravo pessoal pra isso!

E subimos, em silêncio, até o andar de cima. Mostrei primeiro o banheiro que dividia com meu irmão, o quarto da minha mãe, que era a suíte principal, meu quarto

o lugar onde supernovas nasciam

onde Dave se demorou mais, analisando seus recantos. Era a primeira vez, em muito tempo, que eu deixava alguém adentrar aquele recinto, então eu fiquei muito travado e tenso. Era como se pudesse ver dentro da minha alma. O que era ridículo, era apenas um quarto. Mas era tudo, e não era nada.

— Hmm… — O olhar de Dave foi para as paredes em um tom de cinza gelo, e para os poucos móveis encostados contra elas, em seguida, para a televisão, que estava desligada. A estante com poucos livros. O guarda-roupa aberto e com roupas sujas saindo por ele. O computador desligado em cima da escrivaninha, que não era ligado há dias. — Sabe, eu sempre acho que objetos contam uma história.

— É mesmo?

— É meu trabalho, como escritor, desvendar a história das pessoas. Descrevê-las, eu diria.

— E como você me descreveria, então, Dave? — Eu ri, ainda nervoso.

Dave deu uma olhada pela janela.

— Eu acho que você é a loira misteriosa que aparece para apimentar a história. Aquela que faz o personagem principal se apaixonar perdidamente e cometer erros. — Dave se virou para mim. — Ah. Não estou dizendo que Alex é o personagem principal da nossa história, no entanto. É só um exemplo.

Ri de novo, dessa vez bem desconfortável.

— Mas isso não muda o fato de que ele está bem caidinho por você. Nunca o vi tão apaixonado dessa forma.

Aquilo era informação nova para mim.

— Ele disse algo para você…?

— Ah, não, mas eu sei. Não se preocupe. Eu tenho certeza de que o relacionamento de vocês tem futuro. Pode investir pesado, menine.

Ao invés de uma supernova, era como se uma pequena estrela tivesse nascido. Não uma pequena estrela. Um Sol. Algo que brilhava dentro do meu peito.

Uma esperança.

Pior.

Uma expectativa.

— E se eu não quiser nada com ele? — fiz um muxoxo, mas Dave riu abertamente.

— Bem, aí eu teria que recomendar minha psiquiatra pra você. Porque você parece perdidamente apaixonado pelo meu melhor amigo, e eu duvidaria da sua sanidade se você recusasse namorar com ele.

Não respondi, até porque, eu não sabia direito dos meus próprios sentimentos. Eu sabia que o que eu sentia por Alex era diferente dos meus sentimentos por Kurt, por exemplo, porém, era uma bagunça extremamente complicada.

Não sabia o que pensar, portanto, adiaria pensar sobre aquilo.

— Não se preocupe. Não vou invadir sua privacidade mais. — Ele deu de ombros. — Onde estão seus consoles?

— No quarto do meu irmão.

— Ele não vai se importar se você entrar e pegar?

Por um momento, pensei em pegar o celular e mandar uma mensagem e pedir por permissão, mas quem havia pagado por aqueles consoles fora eu e meu suado dinheiro de modelo vivo; se eles estavam no quarto do meu irmão, era apenas porque ele utilizava mais do que eu.

— Ele nem está em casa.

— Tudo bem então. Avante!

Seguimos pelo corredor, e eu abri a porta em frente ao meu quarto para a visão do quarto do meu irmão iluminado à meia luz, e a visão do traseiro branco do meu irmão… e mais algumas coisas.

— Jesse! — Chase e Mitchell gritaram.

— Merda!

— Epa. — Dave colocou as duas mãos na boca, enquanto eu fechava a porta com velocidade, mas não rápido o suficiente para não ter a imagem gravada na minha mente. — Acho que seu irmão estava em casa no final das contas, né?

— Vamos embora — determinei, no entanto, eu conseguia ainda ouvir barulho de pessoas se vestindo dentro do quarto, e ouvi a voz do meu irmão.

— Jesse! Espera, por favor!

E me senti em conflito. Eu não podia simplesmente fugir da casa de novo, porque estava com convidados, mas eu não queria encarar Chase na frente de Alex. Aquela situação era muito embaraçosa. Dave, no entanto, parecia achar aquilo tudo muito divertido, pelo sorriso em seu rosto. Eu queria socar algo. Ou alguém. Ou fugir.

A indecisão me fez ficar no lugar por tempo o suficiente para Chase abrir a porta de novo, com Mitchell colado logo atrás.

— Jesse… desculpa você ter visto isso. — Se eu nunca tinha visto meu rosto corado no espelho, Chase era um ótimo reflexo agora. — Eu mandei mensagem mais cedo perguntando se você estaria em casa, você não respondeu.

— E a culpa agora é minha?

— Meio que é sim. — Dave deu de ombros.

Chase olhou para Dave pela primeira vez.

— E você é…?

— Dave Collins. Amigo do Jesse. Pronomes ele/dele. — E ele faz a barra gesticulando no ar. — Presumo que você seja o irmão gêmeo, o qual ele não fala, e você o namorado do irmão gêmeo, o qual ele nunca mencionou. Por favor, seja o namorado do irmão gêmeo o qual ele nunca mencionou, senão a situação vai ser ainda mais embaraçosa.

— Chase Bennett — Chase se apresentou. — E este é Mitchell Harrison. Meu… amigo.

— Ah, qual é. — Eu revirei os olhos.

— Bem, de qualquer forma, por que você estava entrando no meu quarto, Jesse?

— Tenho convidados em casa, não é óbvio? Ia pegar o PS5 e o XBOX. Nada demais. Não ia ler o seu diário.

Chase pareceu corar mais ainda.

— Eu não tenho diário!

— Tem sim. Guarda na gaveta da escrivaninha.

Mitchell ergueu uma sobrancelha ao ouvir isso.

— Fala sobre mim?

— Não tenho diário, afe! Pegue logo os consoles e me deixe em paz, se é o que quer!

Gesticulei para Dave, e entramos no quarto. Estava abafado e com o cheiro que eu conhecia muito bem, mas tentei ignorar e cumprir o objetivo com rapidez para poupar ainda mais esse embaraço. Quando estávamos saindo, Chase já tinha sentado na cadeira, enquanto Mitchell ainda estava de pé ao lado dele, e eu então disse algumas palavras de despedida:

— Pelo menos tomem banho. Separados. Por favor.

— Vai se foder, Jesse!


Descemos as escadas e voltamos para a sala, onde Alex estava com dois baldes de pipoca, um doce e um salgado, sentado no sofá, comia distraidamente.

— Estava quase indo atrás de vocês — ele comentou, mas parecia muito bem confortável na sua posição. — Entraram num portal para outra dimensão no andar de cima?

— Engraçadinho — eu disse.

— Você não vai acreditar! — Dave correu para se sentar ao lado de Alex.

Enquanto Dave recontava as aventuras do andar de cima, eu me ocupava com a fiação e consoles para nossa diversão; e quando finalmente acabei, meu olhar seguiu para a janela, onde vi que uma chuva rítmica havia se iniciado. Esperava que ela não piorasse, mas era verdade que eu não me lembrava da previsão do tempo daquele dia. Peguei meu celular e fiquei meio atordoado ao ver que a previsão era de chuva, com possibilidade de granizo até, para a noite toda.

Aquilo era um problema…

— Pessoal…

— Ah, você terminou de montar?

— Sim, mas vocês viram a previsão do tempo de hoje?

— Não acredito em previsão do tempo. — Dave foi categórico.

— Como assim?

Alex suspirou.

— Dave acredita que previsão do tempo é uma conspiração do governo. Por favor, não peça mais explicações. Não temos horas suficiente no dia para as teorias malucas do Dave.

— Mas é real!!

— Sim, sim, eu sei, eu sei. — Alex suspirou de novo. — E eu não olhei, porque meu celular está mais para lá do que pra cá. Está cada vez mais difícil usá-lo.

— A previsão é de temp…

— Jesse?

Uma tempestade se formou bem ali, naquela sala. O primeiro raio descia as escadas, na forma do meu irmão gêmeo e seu amigo, “quase-namorado”.

Algumas coisas você não perdoava.

Eles haviam tomado banho, afinal. Provavelmente juntos pelo tempo. Era difícil ter que lidar com tudo aquilo, mas eu havia superado. Eu achava que havia superado. Só era difícil quando eles esfregavam todas as vezes na minha cara.

— O que foi?

— Vocês vão… jogar?

Dava para ver que Mitchell queria se estapear ante a hesitação de Chase.

— Não, Chase. — Eu bufei. — Peguei o PS5 para colocar fogo nele. Claro que vamos jogar.

— Não, o que eu queria perguntar era… — Ele olhou para o sofá, onde Dave e Alex estavam, e de volta para mim. — Eu e Mitchell podemos jogar também?

Minha vontade era de dizer não. De negar, de afastá-lo novamente. Só que… às vezes, você quer tentar mais uma vez. Quer aceitar as oportunidades que são lhe estendidas. E, naquela tarde, com a chuva prestes a cair, eu aceitei mais uma oportunidade do meu irmão me perdoar.

— Podem sim.

Era um caso engraçado. Alex no sofá, Dave espremido ao seu lado, enquanto eu relaxava nas pernas compridas do meu não-namorado sentado no chão; e Mitchell havia tomado a decisão estratégica (ou, acreditava eu, um sermão do meu irmão) para ficar por perto dele no chão, mas longe o suficiente para que fosse “decente”. Alex não parecia se importar com os meus toques indevidos por sua perna. Confesso que eu estava mais preocupado em distrai-lo do jogo do que interessado no jogo em si…

Afinal de contas, estávamos revezando os jogos. Em algum momento percebemos que as opções de jogos de grupo eram um pouco limitadas, então acabamos em um jogo de cozinhar caoticamente, mas era para apenas quatro jogadores. Mesmo revezando, sempre ficava uma pessoa de fora. E aquilo me dava a oportunidade de acariciar a perna de Alex, mesmo com os olhares feios que ele me dava. Eu conseguia sentir os arrepios que causava nele, o que era imensamente divertido.

Cruzei o olhar com meu irmão, e ele pareceu entender algo naquele momento. Fiz um muxoxo, não era para ele ficar me observando, nem me vigiar. Eu não precisava de uma babá a essa altura da minha vida. Se ele podia ficar se agarrando com o namorado no quarto, eu podia muito bem trazer quem eu quisesse para casa. Só ele tinha privilégios naquele lugar?

Foram algumas partidas até que outro barulho nos perturbou, e meu coração congelou. O som de chaves virando, de saltos sobre o piso. Eu não esperava que Nama viesse para casa naquele dia.

— Cheguei — ela anunciou, e analisou com os olhos de águia todos os convidados. Eu retesei as costas no minuto que pôs os pés na casa, e me afastei de Alex. — Vocês têm companhia. — Ela olhou de Alex para Dave. — Que bom.

— Amigos de Jesse — Chase tratou de explicar, para se livrar da bronca. Grande irmão.

Não consegui decifrar a expressão da minha mãe, mas tudo o que ela disse foi:

— Bem, espero que vocês consigam avisar aos seus pais que vão pernoitar aqui, já foi um martírio conseguir chegar debaixo dessa chuva de granizo, imagina tentar chegar na casa de vocês. São bem-vindos se quiserem passar a noite. Vocês já comeram?

Havíamos assaltado o armário de guloseimas, e nosso grupo tinha comprado algumas coisas no mercado, fora as pipocas. Então a fome não era o problema mais urgente.

— Granizo?! — Dave se levantou, e foi olhar a janela.

Alex o seguiu, e os dois constataram o fato de que estavam praticamente ilhados.

Dave começou a respirar mais rasamente.

— Dave, foque em mim — Alex pediu, abraçando Dave. — Foque apenas em mim.

Só vi a cabeça lavanda afundar nos braços de Alex, e por mais que eu soubesse o que era um ataque de pânico, não pude deixar de sentir inveja da calma de Alex ao lidar com a situação; e de Dave, porque era nos braços de Alex em que eu queria estar. Era muito invejável como Alex já parecia saber a rotina, como já sabia apertar os botões e saber como lidar exatamente com Dave.

Queria que alguém me conhecesse tão profundamente daquela forma, que impedisse os meus buracos negros.

queria eu que esse alguém fosse o Alex

— Bem, eu vou me deitar. Vocês estão encarregados de cuidar de seus convidados. Não façam muito barulho. Usem o sofá da sala se for necessário. Mitchell, mande um beijo para seus pais. — Minha mãe sorriu para ele, e passou por nós para ir para o andar de cima.

Chase se aproximou de mim, e falou baixo na minha direção enquanto olhava para Alex, que ainda sussurrava no ouvido de Dave:

— Jesse, está… tudo bem?

— Sim. Aparentemente isso é comum. Dave… não gosta de sentir preso.

— Ah. Entendo. — Ele deu de ombros. — Bem, Mitchell pode dormir na minha cama, e um dos seus convidados pode dormir na… sua. — Ele deu uma nova olhadela para os dois abraçados. — E o outro pode dormir no sofá.

Dave, mais calmo, se afastou.

E Alex, prontamente, disse:

— Eu fico com o sofá.

O que era mesmo aquilo sobre expectativas?

Não crie Sóis com elas.

— Ah, não.

De alguma forma, Dave vocalizou minha própria decepção. A maquiagem dele estava um pouco borrada, mas aquele abraço parecia ter recuperado sua vivacidade.

— Eu não vou dormir com o Jesse, Alex. Não nessa vida, nem na próxima. Se arrume aí pra ficar com seu namoradinho, e pare de evitá-lo.

— Dave.

— O quê…?

— Vocês são namorados? — Chase disse, com um pouco de esperança na voz.

Eu olhei de volta para Alex, que evitou meu olhar. Já que nenhum de nós tinha a resposta para aquela pergunta, ela pesou no ar, cheia de expectativas e sóis e buracos negros.

Eu me retesei.

— Bem, de qualquer forma, eu queria lavar o rosto. — Dave salvou o dia, e me puxou. — Jesse, você pode me emprestar umas roupas pra dormir?

— Claro, claro.

— E quanto a mim? — Alex perguntou.

— Não acho que nada que eu tenha caiba em você, Alex. — Dei de ombros. — Mas posso procurar. Vamos para o meu quarto.

— Mitchell e eu voltaremos para o meu — Chase anunciou.

— Certo. — E eu sorri. — Não faça muito barulho.

Para a minha surpresa, Chase não deixou barato:

— Nem você. Mamãe está em casa agora, lembre-se disso, ela tem sono leve.

Eu corei, porém, não era como se eu não fosse discretíssimo.

Levei meus dois convidados para meu quarto. Dave pela segunda vez, que parecia se sentir muito em casa e começou a fuçar meu armário em busca de uma roupa limpa, a qual pudesse usar para dormir; enquanto Alex admirava a decoração, ou ao menos, a falta dela.

— O que achou?

— Do quê? — Ele se virou para mim.

— Do quarto.

Ele deu uma segunda olhada.

— Bem a sua cara.

Eu cruzei os braços.

— Não sei se isso foi um elogio…

— Não foi uma ofensa. Desculpe. Estou pensando em algo, não tive a intenção de ser rude.

— No que você está pens…

— Achei! — Dave anunciou, tirava do armário um conjunto de peças que eu realmente não me lembrava de possuir. — Preciso de um lugar pra me trocar.

— Você pode se trocar aqui, ué. — Dei de ombros.

— Nem todos partilham do seu amor pela nudez, meu caro modelo vivo exibicionista.

— Eu sou da filosofia de que “o que é bonito é para se mostrar”.

— Bem, eu sou da filosofia de que não quero mostrar todas as minhas cicatrizes e estrias para um bando de macho que não tem interesse em me pegar. Por favor, vocês podem sair do quarto pra que eu possa me trocar? — Ele revirou os olhos.

Ouvi uma batida de leve na porta, e a abri para dar de cara com Mitchell.

Depois de todos esses anos, eu ainda…

— Jesse. — A voz grave dele ecoou pelo meu quarto. — Acho que essas roupas servem no Alex. Prometo que estão limpas. E são confortáveis.

Alex se adiantou vindo atrás de mim.

— Ah, muito obrigado!

— De nada. — Mitchell não sorriu. Era muito difícil ele sorrir para qualquer pessoa, a não ser Chase. Era como se reservasse sua felicidade para apenas uma pessoa em específico. — Chase pediu pra avisar que está arrumando o sofá pro Dave também.

— Seu irmão é meio que incrível, viu, Jesse.

— Ele é.

E Mitchell deu um leve sorriso.

Droga.

— De qualquer forma, muito obrigado por hoje, Jesse. Foi muito importante pro seu irmão.

— Certo. — Minha expressão estava fechada. — Temos que manter Chase feliz, não é mesmo?

— Jesse…

— Você já pode ir embora, Mitchell.

Ele assentiu e fechou a porta atrás de si. Alex olhou para mim, e para Dave, e apenas bagunçou os meus cabelos.

— Vamos sair para que Dave possa se trocar? Você pode me levar pra um banheiro?

— Claro, claro. — Abri a porta de novo, e com uma piscadela, Dave a fechou.

Eu guiei Alex para o banheiro perto da escada, e ele entrou sozinho; eu me escorei contra a porta.

Era difícil quando as memórias ameaçavam borbulhar de voltar. Como um cometa, mãos agarrando cinturas, o gosto ácido de bebida em lábios, e o olhar de decepção…

A verdade era que somente eu tinha me colocado naquela posição, e eu havia complicado tudo desnecessariamente.

E era tudo culpa minha.

Dave saiu primeiro do quarto e foi em minha direção. Era muito estranho vê-lo com mangas curtas. Acho que era a primeira vez que o via daquela forma, e sem o binder também, que ele carregava em mãos, junto com suas roupas. Ele parecia estar um tanto desconfortável de uma forma geral.

— Você está bem?

Ele negou com a cabeça.

— É sempre assim num lugar novo?

— Eu tento me distrair… — Dave deu de ombros. — Mas às vezes é um pouco demais. Desculpa. Será que eu posso ficar jogando um pouco sozinho enquanto tento dormir? Acho que vai tirar minha cabeça dos pensamentos piores.

— Claro que pode.

— Prometo que coloco em um volume baixo.

— Não precisa se preocupar com isso…

E sem esperar uma resposta, Dave desceu as escadas e foi em direção ao andar de baixo e para a sala. Então era por isso que ele queria ficar com o sofá.

Bem, cada um com seus próprios buracos negros.

Alex deixou o banheiro alguns minutos depois.

— Dave…? — foi sua primeira inquisição.

— Já foi se deitar.

— Ah, claro. — Ele segurava as próprias roupas, as mãos estranhamente tensas. — Vamos dormir, então.

Admito que tinha um pouquinho de expectativa ali. Um raio de Sol. Era a sensação que Alex me trazia. Um calor igual a uma tarde de verão passada sobre a grama, então admiro que sim, quando entrei naquele quarto, estava pronto para tentar não fazer barulho algum para acordar a minha mãe. Para ser beijado, como fora na porta de entrada. E talvez algo a mais.

Mas Alex simplesmente colocou suas roupas em cima da escrivaninha, sentou-se na cama, pôs o celular ao lado da cabeça no travesseiro, e deitou-se. Tudo isso sem sequer olhar para mim. Eclipsando-me.

— Alex?

Ele não respondeu de imediato, como se considerasse que a resposta para aquela pergunta tivesse várias camadas.

— Jesse…

— Hm?

— O que nós somos?

A pergunta pairou sobre nós como uma nuvem pesada de granizo, cheia de raios, pronta para um ataque. Eu fiquei quieto, atingido por uma eletricidade. O que nós éramos? Eu não sabia. Eu não sabia. Eu não sabia. Minha respiração travou, e não conseguia sequer pensar, quanto mais falar.

Eu quero algo com Alex?

Bem, eu não, não quero.

Mas…

Seria Alex o suficiente?

Não sabia quanto tempo fiquei em silêncio, mas ele me cortou antes que eu pudesse dizer algo.

— Ah, não se preocupe. Vamos dormir. Boa noite, Jesse.

E se virou de costas para mim. Eu permaneci na porta, e subitamente preso também no tempo. Estaria ele chateado comigo? Teria eu feito algo de errado?

Sentei-me na cama, próximo ao seu corpo, e busquei sua coxa nua com a mão. Alex foi rápido em tirá-la de mim.

— Hoje não, Jesse.

E aparentemente era final. Revi todas as minhas ações no dia, e não percebi nada de errado nelas. Fora alguma palavra errada? Foi o fato de meu irmão ter jogado com a gente? O namorado dele? Teria ele percebido algo? Teria ele notado… foi minha culpa? Foi, mais uma vez, minha culpa?

Sem respostas, tentei me deitar a seu lado e tocá-lo, mas ele se afastou um pouco mais. Ali estava Alex: a pessoa que, apesar de não compreender ainda a vastidão dos meus sentimentos, era quem eu mais queria no momento.

E ele me rejeitava.

Não sei precisamente quanto tempo fiquei ali, no escuro, olhando suas costas. Só sei que, quando meus olhos começaram a arder, decidi que não queria que ele me ouvisse chorar, e me levantei, pronto para fugir. Pronto para ir embora. Para algum lugar. Não poderia usar a janela, então iria usar a porta de entrada. Qualquer lugar menos o berço de supernovas.

Ou iria ser esmagado bem ali.

Quando desci as escadas, ouvi o barulho bem baixinho do videogame, e aquilo atraiu a minha atenção. Não fazia ideia de que horas eram, porém, eu não era o único insone. Com essa certeza, eu desci as escadas e fui em direção ao sofá.

Dave estava sentado na cama improvisada e jogava no PS5, vidrado na TV. Ele não pareceu surpreso ao me ver e se sentar ao seu lado, apenas suspirou:

— É, noite daquelas.

Eu não respondi, apenas abracei minhas pernas e olhei de soslaio, enquanto Dave batia nos inimigos sombrios com sua espada em forma de chave.

— Vocês brigaram?

— Não sei.

Ele me olhou e, de alguma forma, eu sabia que ele me entendia.

— Acho que não saber é pior do que saber, né?

— Ele é sempre assim?

— Alex é uma pessoa difícil. Eu considero, na verdade, as pessoas um grau de dificuldade muito grande. Por isso prefiro bichos. Tente explicar isso na terapia e receba um sermão por horas sobre ansiedade social.

— Entendo. — Mas na verdade, não entendia não.

Nunca havia feito terapia, ou chegado perto de um terapeuta. Havia chupado um psicólogo uma vez, aquilo contava?

— Acho que parte da culpa é minha. Eu que elevei suas expectativas.

— Não, não foi…

— Foi, pode admitir. Você estava praticamente esperando um pedido de namoro.

Fiquei em silêncio, mas, no fundo, era um pouco de verdade.

— Não sei se aceitaria — confessei.

— Bem, isso é algo a se discutir. É por minha causa?

— Em parte. Se estamos sendo francos… por que Alex é tão superprotetor com você? — A cena do ataque de pânico me veio à mente. — Foi por causa do incidente com a gangue?

Dave olhou para mim e pausou o jogo. O pequeno avatar começou a girar repetidamente.

— Ah, isso certamente ajudou. Mas Alex se culpa porque eu fui estuprado aos treze anos pelo tutor que ele indicou; e, aos dezesseis, eu tentei me matar na frente dele.

— O quê…

Ok. As coisas escalonaram rápido demais, especialmente pelo modo que Dave falava como se fosse uma de suas histórias, algo que acontecera a outros e não consigo mesmo. Meu choque era tanto que não conseguia formular uma frase sequer, quanto mais um pensamento. Do mesmo jeito que uma metralhadora, Dave continuou atirando projéteis de culpa.

— Era um amigo dele, do grupinho punk e tal. Estava precisando do dinheiro. Eu era um alvo fácil. Estudava em casa, não tinha amigos, fora os virtuais. Dá nojo a forma como ele me tocava, como ele entrou na minha vida e ninguém percebeu. Como eu não deixei ninguém perceber…

Ele esfregou os pulsos e eu reparei a grande cicatriz que cortava sua pele.

Merda.

Era verdade, né?

— Bem, Alex tem alguns motivos para ser superprotetor. Mas prometo que não há sentimentos românticos entre nós agora. Somos apenas amigos. Ele me ajuda, e eu tento recompensar toda a ajuda imensa que ele fez na minha vida tentando trazer um milésimo da felicidade e gratidão que ele trouxe para a minha. — Dave sorriu. — Prometo que vou conversar com ele e tentar descobrir o que aconteceu. Quando ele está pensativo, ele tende a se fechar mesmo; e eu realmente torço para que vocês dois fiquem juntos. Sério. Eu não vejo problema nenhum nisso.

Minha respiração estava pesada. Era muita informação para se processar. Então Dave havia sido estuprado e havia tentado se matar? E, ainda assim, conseguia torcer pela minha felicidade e a de Alex, como… como alguém conseguia ser assim? Era como um Santo na Terra, incapaz de cometer erros ou falhas. Aguentava qualquer martírio. Um verdadeiro Jó.

Era impossível.

Eu não era capaz de ser uma pessoa igual, ou ao menos digna.

Enquanto Dave era capaz, mesmo com todos os seus problemas, de continuar sendo uma pessoa gentil e capaz de perdoar; eu era incapaz de perdoar as pessoas

mitchell

kurt

meu pai

por continuamente me abandonarem, e me afastava das pessoas que tentavam, com afinco, chegar perto de mim. Porque eu não prestava. E isso era um fato inegável, uma verdade absoluta que pairava no universo, assim como a Lua orbitava a Terra. E eu não tinha a capacidade de mudar.

Ficaria preso no frio da galáxia, e explodiria como uma supernova.

(levando todos consigo, deixando um buraco negro no lugar)

Não sei como deixei a sala depois daquilo. Devo ter dito boa noite a Dave e voltado ao andar de cima em silêncio, com o cuidado para não implodir no meio do caminho. Buracos negros costumavam levar tudo consigo quando explodiam, e eu sabia que aquelas pessoas não mereciam aquilo.

Quando eu cheguei no quarto, eu parei um pouco na entrada, e encostei minha testa na porta. Minha respiração estava pesada, e eu queria, mais do que tudo, chorar. Gritar, espernear, explodir. Implodir.

Não fiz nada disso.

Ao invés disso, fiquei parado em frente à porta, com a respiração pesada, tentando não pensar, mas os pensamentos me invadiram mesmo assim.

Abracei-me e arranhei, com força, meus braços, criando veios vermelhos na superfície do meu planeta, o que costumava me aterrar. Claro, aquilo não era nada saudável, porém, era melhor do que explodir externamente. Era melhor do que preocupar os outros.

— Jesse?

Ergui a cabeça e os olhos verdes de Alex encontraram os meus, cheios de preocupação; e o cigarro aceso nos dedos denunciava que o Deus do Sono não havia visitado aquela casa naquela noite.

— Jesse? Está tudo bem? — ele repetiu, e eu apenas conseguia focar no âmbar aceso na ponta do cigarro, que queimava e queimava, e em como eu queria queimar junto, me tornar cinzas e esquecer de todos os meus problemas; ser fumaça aspirada pelos pulmões de Alex, e quando ele findasse seu último suspiro, eu morreria junto com as células dele.

Era um pensamento meio mórbido.

Não consegui pronunciar uma palavra sequer. A visão de Alex em minha frente era tanto aterradora quanto o que eu esperava ver. Quase como uma prece. Um pequeno foguete lançado ao espaço em busca de vida inteligente. E como eu queria sentir isso: vida.

Eu queria uma prova que existia uma fagulha de vida ainda dentro de mim. Uma forma de comprovar que os pensamentos que preenchiam a minha mente não eram a verdade absoluta, e talvez uma maneira de os afastar. Uma esperança escapou dos meus dedos em um toque agressivo em minha pele, e Alex a segurou. O cigarro ficou pendurado em seus lábios, então caiu e se apagou.

E eu caí junto.

— Como você consegue? — Aquele eco amargo e vazio não era meu.

Não mais alto que a minha respiração. Um vento frio a sair de mim, iluminado pela parca luz estroboscópica que vinha das escadas; que tocavam o verde dos olhos de Alex e os transformavam em imagens cintilantes de estrelas cadentes azuis, vermelhas e incertas. Já eu, ficava bem com a noite. Nunca tive medo dela e de seus perigos. O que eu tinha medo era…

— Do que você está falando?

— Como você consegue aguentar tudo sem quebrar? — cuspi as palavras. Os ventos da tempestade,

supernova,

e eu queria me derramar, implodir, explodir, gritar, espernear, correr e me libertar daquela dor. Como eu queria me despejar por inteiro naquela pessoa. Aquela constatação me assombrou. Alex tinha aquele tipo de atração magnética. Ele era o tipo em que as pessoas depositavam seus medos e esperanças; e ele os absorvia e apoiava sem questão alguma. Era por isso que Dave ainda estava com ele. Era por isso que Alex era tão superprotetor.

Então, por que eu sentia tanta…

Inveja?

Queria que ele olhasse apenas para mim?

Queria aquele carinho direcionado apenas para a minha pessoa?

Senti uma leve pressão sob meu queixo e fui forçado a erguer o olhar. Alex me inspecionou.

— Jesse? Está tudo bem? Você está estranho.

E numa erupção, as palavras saíram uma atrás da outra, suas formas cortaram a minha garganta; e quanto mais eu falava, mais eu sangrava:

— Eu sei de tudo. Dave me contou o que aconteceu com ele. Com vocês; o motivo de você ficar tão em cima dele. Eu sei. Eu não sei o que fazer, eu… eu não entendo.

Alex abriu a boca, e antes que ele pudesse me rejeitar, antes que as palavras dele me cortassem, eu corri. Ao menos, tentei correr. Meus passos começaram a me levar escada abaixo de novo, mas mãos firmes me agarraram pelos braços; e uma breve lembrança de uma noite de chuva preencheu as nossas mentes, quando nossos corpos se encontraram. A fagulha acendeu mil Sóis e mil esperanças.

Ficamos assim parados, nossas tempestades se encontrando. Eu não ousava encontrar seu olhar, essa coragem correra escada abaixo e saíra pela porta. O enlace de Alex era carinhoso e desesperado ao mesmo tempo. Nós caímos no silêncio da noite; e quando ele me pegou pela mão e me levou pela janela e para o telhado, eu aproveitei o frio para não pensar.

Alex me puxou contra seu corpo e ficamos abraçados. Minha respiração começava onde a dele terminava, e demorou alguns minutos até que ele falasse.

— Eu sinto muito.

— Por quê?

— Eu não sei exatamente o que Dave contou pra você, mas não é a verdade. Ele tem a mania de… contar histórias de vez em quando. E isso afeta a maioria das relações dele. Eu tenho que ficar de olho nessa mania dele. Achei que tinha melhorado depois de ter conhecido você. Acho que me enganei…

Ele deixou um suspiro escapar, e me apertou em seguida.

— Por que ele mentiria sobre isso?

— Não sei. Mas vai ficar tudo bem. — Um novo aperto.

Fechei os olhos e escutei seu coração. As batidas eram um embalar cósmico doce de perdão. Eu me encontrava confuso, excitado e carente; contudo, Alex conseguia me trazer uma sensação de paz inigualável. Eu encostei a cabeça em seu pescoço, me encaixando contra suas formas. Quase não ouvi sua última frase.

— Vou fazer tudo ficar bem.

E aquela promessa não me pareceu vã.

Só abri os olhos quando o Sol finalmente nasceu.

capítulo 8

dor de amor

Nenhum dos dois soube quem se moveu primeiro. Mas esperamos o Sol nascer, como se o novo dia fosse renovar as esperanças, e apagar as palavras da noite anterior. A tempestade em minha mente estava acalmada, mas o rastro de um meteoro ainda ousou sair.

— Alex, eu não acho que Dave estava mentindo.

Ele assentiu. Talvez ele estivesse pensando nisso a noite toda. Talvez, a vida inteira.

— Vou conversar com ele. Não se preocupe. Você já tem problemas demais, Jesse.

E ele afagou meus cabelos quando pousamos de volta ao número vinte e quatro da rua das Margaridas. Nosso voo tivera curta duração; o orvalho da manhã caía sobre a relva e entrava em meu corpo em pequenas adagas a cada centímetro de minha pele que não mais tinha contato com a de Alex. Todas as funções aprendidas com custo na infância, esquecidas uma vez que ele estivesse por perto. Até minha respiração se tornava um ofegar fraco e singelo. Eu o olhava. E esperava.

Meus lábios formigavam e esperavam.

Ele me notou. O Sol irradiou sobre seu olhar, o verde brilhando com intensidade sob o nascer e iluminando em todas as cores, branco. E eu soube. Naquele momento, eu soube. E esperei.

Ele veio até mim, e minha respiração ofegante falhou quando seus lábios vieram…

E encostaram-se em minha testa, em um toque singelo.

Simples.

Eu fechei os olhos e tentei me concentrar naquilo. Era mais do que eu merecia. Era muito mais íntimo do que eu merecia. E, por hora, bastava. O sorriso que ele me dirigiu, meio tímido, meio corado, bastava.

Céus, ele valia a pena.

Alex era o suficiente.

interlúdio

Seu olhar era infinito. O meu, repleto de cinzas. Sua voz estava na ponte de novo. Estávamos andando e, de repente, seus braços escorregaram de meus dedos, e eu corri. Corri por léguas, por milhas, por quilômetros. Corri até não ter mais fôlego, e foi só quando agarrei sua mão que me dei conta de mim.

— Você me segurou, Alex.

Sua voz me trouxe de volta, com o toque frio de sua mão.

— Você não me deixou cair — repetiu. — Eu estou vivo.

Estava?

Então por que as flores no meu peito não morriam? Por que cada respiração cortava a minha garganta e tornava tão difícil de te encarar? Minha visão marejava, e você se tornava ondas de novo, e de novo; você caía.

Eu não soube quem disse:

— Você quer continuar?

Olhei em seus olhos. Por um momento, os atravessei. E por fim:

— Sim.


— A foda foi boa, huh?

Não seriam as provocações de Dave que acabariam com meu bom humor. Depois que saímos do quarto, descemos as escadas e encontramos um Dave ainda sentado no sofá, com as pernas cruzadas, e dormindo com o controle em mãos, o videogame ainda ligado. Eu sugeri, brevemente, tirar uma foto, mas Alex apenas riu e o acordou. Dave parecia agitado desde então.

Ainda estava cedo, e como nossa última refeição havia sido pipoca e doces, Alex se ofereceu para fazer algumas panquecas com ovos e bacon para comermos com xarope de bordô, que havia aparecido misteriosamente durante a noite.

Eu e Dave sentamos lado a lado nas banquetas da ilha no meio da cozinha. Os únicos sons eram do óleo chiando contra a carne e do tec tec frenético dos dedos de Dave sobre as teclas do celular. Meu olhar não deixava as costas largas de Alex quando o escritor ao meu lado finalmente gritou:

— Minha boa Senhora dos Sete Pecados, por favor, me crucifique agora mesmo.

Alex se virou no mesmo instante, sem saber o que fazer, a frigideira cheia de óleo ainda em punho. Eu arqueei uma sobrancelha, curioso. Eu notei que ele digitava algo em fúria, mas imaginei que fosse algo como uma história, ou algo parecido. Percebi logo de imediato que se tratava de um aplicativo de conversa. Um que eu utilizava muito para falar com…

Ah, por falar nisso. Eu ignorei meu telefone por tempo demais. Peguei o aparelho e lá estava o que eu imaginara: várias e várias mensagens, todas do mesmo número. Algumas de minha irmã, mas a maioria da madrugada eram de Kurt. Bêbado e querendo uma foda com certeza. Apenas vislumbrei algumas dela para ver seu conteúdo.

Meh. Outra hora lidaria com isso. Minha noite havia sido infinitamente melhor do que seria se eu tivesse ido.

— O que foi, Dave? — Alex conseguiu desligar o fogo e colocar tudo em ordem antes de lidar com aquele incêndio em particular.

Já Dave era incapaz de formar uma fala coerente.

— Aaaaaaaaaaaaaerghhh — foi o grito gutural que escapou da garganta dele. Ele abaixou a cabeça, deixou o celular em cima da bancada, e colocou as mãos sobre o couro cabeludo.

— Dave, não se machuque — Alex alertou. — Você já não tem muito cabelo, pra começar.

Só que o aviso pareceu deixá-lo pior.

— Ai, não, agora vou ficar ainda mais feio… como vou sair assim?

— Ir para onde, Dave?

Alex colocou as mãos sobre seus ombros, e imediatamente um vento frio soprou na cozinha. Mordi meu lábio inferior e tentei me concentrar em outra coisa. Passei o olhar pelas mensagens de Kurt de novo, pensando em como respondê-lo.

— Samuel me chamou para sair…

— Num encontro?! — A felicidade de Alex era genuína, se derramava em sua voz.

— Não. Bem, talvez. Ele perguntou se eu iria na reunião do grupo de escrita dele… disse que eles ficam acordados a noite inteira escrevendo. É um dos principais eventos do mês. Eu nunca participei de nada parecido…

— Mas você não gostaria de ir?

Eu não reconhecia a minha voz. Meus olhos só estavam voltados para as mãos de Alex. As mãos de Alex sobre os ombros de Dave, o contato. Dave tremendo. Alex o segurando.

Por que ele estava o segurando?

— Claro que quero ir… estou dois terços na escrita do meu livro… acho que seria um bom incentivo.

Alex soltou uma risada, e liberou meu coração ao largar os ombros dele e voltar para a comida.

— Claro que passar a noite junto do seu namoradinho é a ideia máxima de um encontro romântico para Dave.

— Nem todos podem passar uma noite inteira abraçadinhos fazendo chucuchucu com seus amorzinhos. — Ele fez um muxoxo. — Eu quero passar mais tempo com ele, mas isso significa passar mais tempo com um monte de gente desconhecida também.

— Você não os conhece da internet?

— Conheço. Mas não é a mesma coisa, né?

— Não é? — Eu dei de ombros. — Eu encontro estranhos da internet o tempo todo.

Alex me dirigiu um olhar cheio de ciúmes e surpresa.

— Por causa do trabalho — apressei em responder.

Não sabia porque tive que complementar aquela resposta com uma meia-verdade. Era por causa do trabalho. Mas, na maior parte das vezes, não acabávamos em negócios, e sim na cama. Não era algo que ele precisava saber.

Ficamos em silêncio por tanto tempo que nem reparei que Alex finalizou as panquecas, e o cheiro doce penetrou todo o meu ser.

— Bem, está decidido.

— Como assim? Eu irei?

— O que devemos fazer. Jesse, acho que temos um encontro esse final de semana também.

— Quê?!

— Dave, como participamos desse tal encontro com o grupo de escrita?

— Vocês querem mesmo?

— Lógico. — Brinquei. — Alguém tem que ser seu coach de namoro.

— Fale isso pro seu namorado.

— Eu sempre falo as coisas pro Alex.

— Então ele já é seu namorado? — Meu irmão invadiu a cozinha. — Que bom, porque o cheiro é espetacular. Se for para acordar todos os dias assim, eu aprovo o relacionamento.

Meu rosto dizia tudo, e apesar das risadas direcionadas a minha pessoa, apenas busquei a mão de Alex sobre o balcão; dessa vez, ele a aceitou, e sorriu discretamente.

Então estava tudo bem entre nós, e era aquilo que importava.


Acontece que arranjar ingressos para o evento não era uma tarefa tão fácil assim, especialmente de última hora. Foram necessárias algumas ligações da parte de Alex para o tal Samuel; e embora o nervosismo de Dave fosse perceptível, sua animação também o era. Conforme quanto mais a data se aproximava, mais ele tremia.

Quanto a mim e Alex…

Se eu achei que algo houvesse mudado naquela noite em especial, Alex não o disse, e nem eu. Nunca soube se Alex tinha trocado palavras com Dave sobre o que ele havia me dito. E, no fim, aquela ferida permanecia, e se infectava como uma ideia.

Apesar do encontro com o grupo de escrita ser apenas na última semana do mês, meus encontros com Alex foram espaçados. Não por culpa dele necessariamente, mas sim devido a grande quantidade de trabalhos da faculdade, ao ponto que até eu passara a recusar dormir na casa dele, devido ao cansaço; porque quando íamos para sua casa, dormir era a última das preocupações. Alex também passou algumas noites dormindo na casa de Dave, pela ansiedade; e fui convidado em algumas ocasiões para dormir lá também, mas… não me sentia confortável assim.

Enfim.

Não adiantava ficar pensando naquilo quando eu tinha um encontro para ir. Alex me chamou para um café apertado, próximo da faculdade, porque, mesmo com os trabalhos, ele queria me ver. Achei fofo, e tentei ignorar como meu coração reagia ao ver que, apesar de tudo, Alex se importava comigo.

Era algo bom.

Não sabia exatamente o quão bom, mas era um quentinho no meu peito.

— Vai sair de novo? — A voz gelou meus sentidos, e eu sofri uma hipotermia. Não a encarei, porém, não sabia como não tinha ouvido os passos pesados do salto alto. Nama também iria sair. — Você não acabou de voltar do trabalho?

— Hm.

— Pelo amor de Deus, Jesse. — A voz dela, decepcionada, e eu com minha vontade de fugir. Amarrei os sapatos de novo, apenas para não encará-la. — Juro que não sei o que você quer da vida, desperdiçando seu tempo dessa forma. Antes de procurar uma namorada, procure melhorar você mesmo…

Antes que o sermão continuasse, eu me levantei bruscamente e fui em direção à porta.

— Jesse, antes que vá — Nama me chamou —, preciso conversar com você amanhã. Por favor, volte para casa hoje e não saia mais. É um sábado, então você não tem trabalho, né?

— Hm.

E antes que ela reclamasse ainda mais, eu saí porta afora; corri em direção ao ponto de ônibus, e ultrapassei meus pensamentos de buraco negro. Corri tanto, e ao ver que o ônibus não vinha, meu instinto reagiu antes; e me vi correr, a respiração esbaforida; e quando vi as luzes vermelhas do neon da faculdade, apenas parei quando vi meu Sol.

Alex me esperava na porta, e parecia surpreso.

— Achei que fosse demorar mais. — Ele sorriu, e eu soube, então, que tudo ficaria bem. Me joguei em seus braços e, mais uma vez, me esqueci de quem era.

— Posso dormir na sua casa hoje? — a pergunta escapou dos meus lábios uma vez que entramos e pedimos nossos drinks.

Alex, um milkshake de Ovomaltine, e eu, uma água e um café expresso; a água foi devorada de imediato. Alex corou um pouco, mas apenas apertou seu enlace.

— Tudo bem, você é sempre bem-vindo lá. Mas… estava pensando em outro programa para amanhã.

— O quê? — Mexi com a colher no meu expresso, vendo o chantili se derrete.

— Quer ir ao cinema?

Meu primeiro pensamento foi

nama

o gosto de alex

E não era difícil saber qual eu preferia. Não havia compromisso algum que me fizesse perder aquele encontro.

— Claro, ruivinho.


A noite veio, e, mais uma vez, nossos corpos descansavam sobre a cama, nossas respirações se confundiam com o ar frio. Minhas pálpebras caíram, sonolentas, sobre meus olhos, especialmente pelo toque de Alex rítmico em minhas costas, traçando seus contornos e relevos. A cicatriz por debaixo era menos perceptível, mas ainda estava lá.

— Qual é o motivo da tatuagem?

— Hm? Motivo nenhum.

— É muito lindo o desenho.

Eu soltei uma risada baixa, e virei o corpo para voltar a encará-lo.

— Por que você é fascinado pela minha tatuagem?

— Eu gosto de hortênsias, a flor, eu digo.

— Você gosta de flores?

— Pode se dizer que sim…

E seu olhar caiu sobre minha boca, esperando o beijo que veio cálido em seguida. Meu gelo se derreteu contra seu fogo, e me abri novamente contra ele, sentia seu toque, faminto e sedento. O beijo durou mais alguns segundos, me incendiando, quando Alex o interrompeu e me encarou, antes de se levantar da cama e começar a procurar suas roupas.

— Venha. Eu quero te mostrar algo.

— Vamos sair? Olha a hora, Alex.

— Não é muito longe. Prometo.

Pensei em reclamar, mas… o olhar determinado dele me faria fazer qualquer coisa. Eu me vesti e coloquei um dos seus casacos, sem o fechar; enquanto Alex saiu apenas com um suéter. Calçamos nossos sapatos, mas perdi a coragem quando ele abriu a porta.

— Sério, Alex, prefiro muito mais ficar dentro de casa. Está muito frio!

— Só alguns minutos. Prometo.

Revirei os olhos e saí. Ao invés de irmos para a rua principal, Alex seguiu um caminho para dentro da cerca viva, que estava mais para morta por causa do frio. Ele tirou uma das chaves e abriu a porta do quintal da casa. Ele tinha me contado que o quintal era um terreno em comum dos três apartamentos, mas Alex nunca me contara o que tinha nele. Achei que era apenas um jardim comum.

Quando a porta se abriu, achei que o tempo passara mais rápido — porque, no inverno que se iniciava, íamos para a mais bela primavera.

O jardim tinha alguns arbustos, apesar das flores morrerem por causa da temperatura, no entanto, o espetáculo de tons de azul, rosa e branco floresciam a despeito do clima. Contra o céu negro das folhas da noite, parecia que tinha uma verdadeira galáxia entre nós, não longe, mas a meros passos de distância.

— Não valeu a pena?

— Como…

— Eu não sei direito. Nunca vi essas hortênsias morrerem, mas desde que me mudei, eu cuido delas. É um dos pequenos milagres da natureza, acho. E você não questiona milagres de verdade.

Alex me abraçou, e eu senti seu calor através das roupas; apenas paramos e admiramos a paisagem. Ele fechou os olhos e encostou seu rosto contra meu pescoço, aspirando a minha essência. Eu apenas sentia o toque em minha tatuagem, pensativo.

Ele notara as cicatrizes. Sabia que havia uma história — Alex não passara tanto tempo admirando a minha tatuagem sem notar o que ela escondia. Eu não queria contar, porque eu não gostava de lembrar, mas… na hora, quis revelar-lhe meu segredo — de que meu pai era bruto, que sua ideia de filho perfeito era um patamar inalcançável e de todas as suas tentativas de tirar a homossexualidade de mim na base de cinto, a dor da libação

eu vi você cair

E eu quis sim contar-lhe, algo tão íntimo meu, que as cicatrizes debaixo das hortênsias continham as raízes do meu problema; porque se não tivesse seguido aquela luz, talvez estivesse morto, e talvez tivesse sido melhor.

Mas não consegui. Não agora, com meus sentimentos tão revirados e incertos. Eu apenas me virei para Alex e o beijei de novo, entregando-lhe todas as dúvidas do meu coração e esperando alguma resposta que nunca viria.

Perdidos no espaço um do outro.

Saímos para o cinema, e pegamos o metrô dessa vez, para chegar até a estação em que o shopping se localizava. Estava um pouco cheio, então fiquei de pé, mas Alex conseguiu um lugar para sentar, e tirara o caderno — o mesmo que usava para me desenhar — e começou a esboçar algumas pessoas do vagão em que estávamos.

— Não vai me desenhar? — provoquei.

— Não posso.

— Por quê?

— Meu professor reclamou que eu só tinha uma pessoa no caderno inteiro, e o objetivo do exercício era preencher o caderno com pessoas diferentes, para conhecer tipos de corpos diferentes.

— Entendo… mas o exercício não era para semana passada?

Ele deu de ombros, sem querer continuar a falar.

— Alex…

— Ele me deu um tempo a mais.

— E a nota, não?

Alex deu de ombros de novo, e eu suspirei.

— Alex…

— Não se preocupe, sério. Eu ainda vou passar nessa matéria.

— E quanto a sua bolsa?

— Evito pensar em problemas até que eles se tornem um problema de fato.

— Não parece bom, evitar pensar em algo.

— As coisas eventualmente se resolvem. Agora… — Ele guardou o caderno na bolsa, e segurou na minha cintura, me fixando mais ao chão. — Vamos pensar apenas no cinema, ok? Que filme quer ver?

— Qualquer um está bom. De preferência uma sala sem muita gente…

— Jesse.

— Você gostou da última vez.

— Eu prefiro evitar ser preso por desacato.

— Qualquer um está bom, então. Pode escolher.

Os olhos dele brilharam.

— Bem, tem esse filme…

E ele continuou a falar sobre a premissa do filme durante todo o trajeto de metrô e caminhando, eu apenas seguia fragmentos. Era o tipo cult que eu não costumava me interessar, no entanto, se Alex ficaria feliz…

Entramos no cinema, e não estava cheio, mas tinha pessoas o suficiente para que eu não pudesse ocupar minha boca com outra coisa a não ser a pipoca que comprara para nós dois. Alex ficou completamente fascinado com a história e, em algum momento, vi até lágrimas se formarem em seus olhos. Eu estava cansado, e passados trinta minutos — que pareciam uma hora inteira —, eu terminei meu refrigerante e resolvi me levantar.

— Vou comprar mais comida — avisei a Alex, que apenas me encarou, assentindo. — Volto daqui a pouco.

Andei pelos caminhos internos do cinema, e apesar de ser sexta, por causa do horário, tinham poucas pessoas andando por aí. Decidi ir ao banheiro antes de ir comprar o refrigerante — o contrário talvez fosse um pouco nojento. Quando estava lavando as mãos, senti uma presença perto, e um homem, talvez nos seus trinta anos, se aproximou lavando as mãos na pia ao lado da minha, sendo que éramos os únicos no cinema.

— E aí, gatinho.

Eu revirei os olhos, mas… estava entediado. Era tão ruim assim flertar um pouco?

— E aí, bonitão.

— Sozinho?

— Você está aqui, não está? — Ofereci meu melhor sozinho. — Não posso dizer que estou sozinho dessa maneira.

— Entediado?

— Algo assim.

— Posso te mostrar uma coisa muito divertida…

— Hm.

— Não vai não.

Antes que eu pudesse responder, a voz de Alex ecoou pelo banheiro. Eu nunca tinha o visto tão irritado — em geral, Alex controlava as suas emoções —, e até mesmo a raiva que sentira com seu colega de faculdade não parecia tão séria quanto ali. Alex avançou indo em minha direção, e ficou na minha frente contra o outro homem.

— Eh… não sabia que o gatinho tem dono.

— Ele tem. Pode ir saindo antes que apanhe.

O outro homem olhou para mim, e eu apenas dei de ombros. Ele parecia muito pior sob aquela luz, e eu não dava para covardes. O homem saiu, e Alex se virou para mim.

— Você está bem?

Assenti, e ele me abraçou, se agarrando contra meu corpo. Sua voz saiu baixa e rouca.

— Você é meu.

— Não sabia que era tão ciumento.

— Jesse, não me provoque.

— O que vai acontecer comigo se continuar?

— Eu… — Ele baixou o tom, rosnando contra a minha orelha. — Eu vou ter que te punir, Jesse.

— Hm… isso só me dá mais vontade de continuar…

— Idiota.

Mas o abracei, e o fiz se curvar contra mim enquanto ficava na ponta do pé para beijá-lo.

— Estou aqui, Alex. E não vou embora com ninguém além de você.

— Melhor mesmo. — Ele bufou, e me pressionou contra o balcão. — Céus, que susto você sumir assim… não faça mais isso comigo.

Apenas o abracei, não sabia o que responder. Era óbvio que ele tinha algum trauma, mas… eu não sabia o que responder, porque meu coração orbitava de felicidade ao ouvir aquelas palavras. Não que eu quisesse pertencer a alguém, contudo, a perspectiva de Alex me querer tanto assim… era um pouco lisonjeiro até. Eu ofereci meu pescoço para ele e disse:

— Me marque como seu então.

E o beijo de Alex foi intenso, me fazendo gemer contra seu quadril, enquanto a marca vermelha, que o espelho refletia, era parte do quadro da minha pele cheia de roxos, verdes e azuis, todos criados por seus lábios.

— Vamos voltar? — ele ofereceu, depois de terminar.

— Sim, eu ainda quero comprar algo, no entanto.

— Podemos ir embora.

— Ué, você não queria ver?

— Você não está entediado? — Desistindo, eu confirmei. Ele tomou a minha mão e me guiou para fora do banheiro. — Vamos dar uma volta no shopping então.

Eu assenti, sorrindo, enquanto tomávamos sorvete —

é inverno, Alex,

é mais gostoso assim, Jesse

—,nós dois ligados pelo calor de nossas mãos.

Quando o dia chegou, eu simplesmente dormi até o horário de sair para me encontrar com Alex e Dave. Iriamos nos encontrar no apartamento de Alex, e, de lá, partiríamos para a biblioteca pública em que o evento ocorreria. Não estava levando nada demais. Alex levaria lanches e cobertores. Dave disse que levaria “sua mente afiada e um livro para acabar”. Eu e Alex ficaríamos com a parte da comida e apoio moral. Seria uma noite diferente.

Peguei meu celular que estava na mesinha ao lado na minha cama, carregando. Mais mensagens.

Kurt: Pare de me ignorar, puta.

E, às vezes, eu só queria ignorar que a minha vida existia.

Não respondi, mas outra mensagem inoportuna apareceu em forma de uma batida na porta. Essa, infelizmente, eu não iria conseguir ignorar se eu quisesse sair ainda a tempo de não me atrasar.

— Jesse?

— Hm.

A porta se abriu, e meu gêmeo, com um ar encolhido, entrou. Era estranho. Um dia, eu já havia achado que nós éramos o espelho da mesma pessoa. Nós tínhamos as mesmas piadas internas, um alfabeto só nosso. Aí, quanto tudo aconteceu, e nos separamos, eu nunca soube me situar. Como um asteroide saindo da órbita do planeta. Eu e Chase não tínhamos mais coisas em comum. Eu nem sabia mais o que ele gostava ou não. E ele não sabia de nada da minha vida. Francamente, ele poderia passar anos sem falar comigo e seria a mesma coisa. A mesma frieza, a mesma distância. Não sabia se teria resultado.

— Oi. — Ele olhou em volta. O quarto dele tinha o mesmo tamanho, senão, um pouquinho maior, porque tinha um banheiro suíte. Eu que tinha ficado com o banheiro do corredor porque vim depois. — Eu queria falar com você.

— Ninguém está te impedindo de falar as coisas para o ar.

— Ah… — Ele suspirou. — Por favor, não torne as coisas mais difíceis do que elas já são.

Eu não queria tornar as coisas difíceis, mas eu simplesmente não sabia como lidar. Chase olhou ao redor. Meu quarto era vazio. Não era como se eu não tivesse coisas, só que a maioria delas não estava ali naquela casa. E não era como se eu pudesse reavê-las. E nem queria mais, a essa altura do campeonato. Era como se não fossem mais minhas.

— Eu queria conversar com você.

— De novo, você pode falar pro ar. Fale rápido, eu tenho horário para sair.

Ele revirou os olhos.

— Você recebeu o recado de Hayley?

Em algum momento, eu tinha. Mas não tinha registrado, porque, pior do que lidar com meu irmão gêmeo, era lidar com a minha meia-irmã. Porque isso significava que quem estava por trás era…

— Eu só queria avisar que eu não irei passar o Natal com eles.

E aquilo era definitivo, afinal.

— Bem, bom pra você.

— Você vai?

Aquilo era uma pergunta difícil. Respondi da melhor forma que eu sabia.

Dei de ombros.

Chase revirou os olhos de novo. Ele veio com passos pesados até a minha cama, onde eu não havia me levantado, e ignorava olhar para meu reflexo aquele tempo todo. Sentou-se ao meu lado e falou, com as palavras emborcadas:

— Eu sei que não estamos bem…, mas eu queria dizer algo pra você.

Não respondi. Porque o ar pesado da ciência do que viria apertou meu peito e prendeu meu fôlego, e eu sabia. Antes mesmo que ele abrisse a boca, eu sabia que palavras viriam de sua boca.

— Mitch… Mitchell. — Ele pigarreou. — Ele me pediu em namoro.

O quarto implodiu quando eu pisquei os olhos. De repente, Chase estava ali, e eu não estava. Estava no vácuo, e tinha me tornado uma supernova. Meu interior sugava a tudo, a mesa, a cadeira, meu notebook. Todas as letras do teclado voavam pelo ar; e o sorriso tímido de Chase me encorajava a afundar na sensação de morte. Por um milésimo de segundo, eu desapareci, e não era eu mesmo. Eu havia morrido.

E, quando o segundo passou, e voltei para a realidade,

meu irmão sorrindo

beijos trocados durante a madrugada

uma promessa

um sorriso tímido

 eu tive de dizer:

— Que bom para você, Chase.


Não sabia se existia algo parecido com um tornado na galáxia, mas me movia com forças que não sabia existir dentro de mim. Meus tênis desamarrados me levaram para longe, e eu sabia

(eu vi).

Era como se gotas de chuvas caíssem em meus ombros e o frio penetrasse meus poros. A casa de Kurt era ali por perto… logo depois da…

(eu vi você cair)

— Você demorou, Jesse!

Ainda era novembro, porém, foi como se uma aura mágica e quente de maio soprasse vida em meus pulmões. Olhei para o lado, para quem me chamava, e a vi novamente. Aquela pequena luz. E meus pulmões se encheram de primavera.

Meu olhar se abaixou, envergonhado. Alex estava sentado nas escadas da sua casa, um cigarro em suas mãos. Devia estar esperando há algum tempo. Eu mal me recordava que tínhamos planos, mas bastou vê-lo e minhas pernas souberam para onde ir. Não era para a casa de Kurt que elas me guiavam.

Era ali. Naquele pequeno apartamento.

Fiquei frente a frente com Alex.

— Vamos, que cara é essa? — E ele sorriu. Passou o braço pelos meus ombros, aquecendo-os. — Nossa, você está gelado!

— Está frio. — Dei de ombros. Tentava mais do que tudo conter os calafrios, a tormenta, o tornado.

— Você não trouxe uma jaqueta?

Ah. Na minha falta de memória, eu saíra de casa na pressa e nem vestira um casaco ou algo do tipo. Era por isso que eu estava prestes a tremer e passar por calafrios. Bem. Eu nem estava sentindo alguma coisa de qualquer forma. O frio era melhor do que sentir esse peso na minha consciência e coração.

— Eu dormi demais. — Foi a minha desculpa final.

Alex me encarou e, por um momento, temi que ele fosse perguntar mais alguma coisa. Porém, ele simplesmente virou-se, entrou em seu apartamento, foi para o amontoado de roupas que ele chamava de guarda-roupa; e tirou um suéter laranja e felpudo.

— Se você não se importar, eu acho que vai ficar mais frio mais tarde…

Era no mínimo dois tamanhos maior, no entanto, uma vez que passei minha cabeça pelo buraco, eu me senti um pouco melhor. Porque o suéter não tinha um mau-cheiro. Tinha exatamente o cheiro de todas as coisas de Alex: tinta guache, um odor de desodorante masculino e do xampu que ele usava. E quando ele segurou minha mão ao sair do apartamento, para que pudéssemos buscar Dave, eu me senti um pouco mais aquecido.

Não estava tudo bem, mas não estava tudo mal também.

— Vamos, ainda temos que pegar Dave. Ele já está me enchendo o saco mandando mil mensagens e querendo desistir de ir.

— Precisamos forçá-lo então. — Com as mãos dele em meus ombros, me aquecendo, era fácil voltar a sorrir.

Os problemas pareciam tão menores. E quando ele pegou minha mão, envolvendo-a com a sua, eu sabia que, talvez, as coisas ficariam bem.


— Isso aqui é caótico, né. — Foi meu comentário ao chegarmos.

O local era uma biblioteca pequena, com uma pequena livraria acoplada. Havia várias mesas para leitura, que eram ocupadas por várias pessoas usando os mais diversos tipos de roupas: desde pijamas de zebra, passando por conjuntos inteiros de cosplay de She-Ra; e até uma pessoa, que parecia estar organizando tudo, em um traje de gala. Todos estavam com notebooks, embora alguns carregassem cadernos debaixo do braço para cima e para baixo. O que tinham em comum, no entanto, era o tom de desespero em seus rostos.

— Tenho certeza de que encontraremos Samuel. — Alex parecia empolgado. Ele agora estava de mãos dadas com Dave, como de costume, mas o rapaz parara alguns passos atrás, a franja lavanda cobria os olhos baixos. — Dave?

A resposta saiu murmurada, e, especialmente em lugar tão barulhento, eu mal entendi o grunhido que Dave deu. Como eu era quase da sua altura, conseguia enxergar seu rosto vermelho e cheio, com os olhos fechados. A mão dele estava fechada com força ao redor da de Alex. As duas tremiam, e eu suspirei. Realmente, deveria ser difícil para Alex lidar com Dave o tempo todo. Alex se virou para Dave e colocou a mão sobre sua cabeça. O carinho cortou minha respiração, e acalmou a dele, que abriu os olhos.

— Eu estou bem — outro murmúrio.

— Então vamos? — Ele abriu um sorriso gentil, daqueles que só dirigia a ele, e engoli em seco, a saliva afundando em meu estômago e revirando-o.

Eram essas pequenas coisas. Como pedras se acumulando em um lago. Eu fingia não notar.

E então ele sorria para mim, e ficava tudo bem.

Alex gemeu um pouco.

— Tudo bem? — perguntei.

— Tudo sim. É só uma leve dor de cabeça. Nada demais.

Eu acenei, e Alex tomou a dianteira, seguido de Dave. Eu os seguia com os olhos atentos às costas do mais alto. Seria muito melhor se tivéssemos ficado no apartamento. Ou se eu tivesse ido para a casa de Kurt. Acho que tinha sido um erro ter vindo para um espaço com tanta gente, mas já estávamos ali. E, no final, era a noite de Dave. Não podia estragar tudo. Era só fingir ser uma pessoa normal por doze horas. O quão difícil era uma missão daquelas afinal de contas?

Muito, aparentemente.

Encontramos Samuel em uma mesa relativamente vazia, porque tinha exatamente três espaços vazios que ele reservara para nós. Ele era muito diferente sem o uniforme do café da universidade. Seus cabelos lisos e pretos estavam jogados para trás e uma capa puída e cheia de pelos brancos, além de uma camisa social.

— Qual a ocasião? — Alex apontou para o figurino.

— Meu livro é de vampiro. Uma coisa meio Anne Rice encontra Círculo de Fogo.

— Com gays, né? — Dave riu.

— Por isso vai ser o maior sucesso.

Foi naquele momento que percebi que não fazia a menor ideia do que Dave estava escrevendo. Ele não trouxe um notebook, como a maioria das pessoas, e sim um caderno pesado, cheio de anotações e uma caligrafia pesada e miúda. Virei-me para Alex, e ele deu de ombros. Acho que ele também não havia lido.

— Dave nunca compartilha o que escreve.

— Ainda não está pronto! — ele grunhiu.

— Nunca vai estar pronto se você não terminar.

— Bem, hoje é a noite do intensivão. Se você não for hoje, já era. — Samuel riu, mas consegui notar que as mãos de Dave agarraram as de Alex com mais força.

Estava doendo. Por que será que Alex não reclamava? Por que aguentava tudo calado?

Meus pensamentos estavam em um turbilhão enquanto nós nos sentávamos, e eu, ao mesmo tempo que observei a conversa, era como se fosse um zumbido alto em meus ouvidos, indistinto e distante, mas que ecoava. Eu não estava ali. Estava no espaço. Estava embaixo de cobertas, com mãos dadas, e beijos trocados. E como um astronauta perdido na galáxia, eu comecei a sufocar.

— Jesse?

Olhei para o ruivo e não o reconheci. Eu não conhecia nenhuma das pessoas ali. Minha respiração estava pesada e minha visão turva. Tudo em meu ser gritava, mas no espaço não há eco. Ninguém para ouvir meus lamentos.

— Vou ir ao banheiro — disse, e me levantei.

Eu não vi para onde eu fui, mas, definitivamente, eu não sabia o caminho para o banheiro, então só vaguei. Minha vontade era de ir embora, e qualquer lugar que minhas pernas me levassem estava bem. Andei pelo que pareceu serem quadras, ou milhas, ou anos-luz inteiros.

Meu telefone era um peso em meus bolsos, e peguei-o, encarando a luz cálida e azul. Ela me traria algum alívio. Eu sabia que

iria me arrepender

Kurt iria me atender.

Ele conhecia o frio da solidão, ele sabia como era. Ele entenderia.

Porém, no fundo, eu já sabia. Quando o celular caiu na caixa postal, eu não deixei uma mensagem. Eu sabia que seria inútil. Kurt sempre tinha “problemas de Kurt”.

eu também tenho a minha vida para cuidar, não posso te foder todas as vezes que você quiser dar pro namorado do seu irmão

e, no fundo, não importava, porque nada importava; o que é ser uma cinza cósmica em meio a uma explosão de uma supernova?

Meus dedos agiram por si só, e eu notei o número do rapaz. Eu mal conseguia ler seu nome, mas eu conseguia lembrar de onde o conhecera. Ele tinha dedos bonitos, dedos de ilustrador cheios de carvão, e ainda conseguira me entregar o número, corajoso

talvez ele me fodesse contra o cavalo

e talvez aquilo bastasse

meus dedos discaram.

— Ei, olá. E aí, gato, será que posso ir para sua casa agora? — Qual era mesmo o nome dele? Eu precisava lembrar. Precisava. Ou não.

Não ia lembrar depois da foda mesmo. O que era gemer um nome qualquer enquanto estou debaixo de lençóis quentes que imitavam a luz do Sol?

Sol.

— Jesse?

A luz intensa invadiu aquele cômodo e meu ar faltou. Foi quando notei que estava em um depósito, com vários produtos de limpeza, e quem abriu a porta foi Alex, com o olhar consternado.

Merda.


— E aí, gato, posso ir para a sua casa?

Seu rosto se avermelhou, como uma criança pega em uma travessura. Era meio cômico, até porque, você não tinha a idade de falar uma coisa daquelas e ainda parecer tão inocente.

Mas algo em mim se revirou.

— Jesse? Com quem você está falando?

Seu olhar mudou, de uma corça inocente para nenhuma expressão. Vazio. Droga, como eu queria saber o que se passava dentro da sua cabeça, ler seus pensamentos.

Às vezes, você não percebia os sinais mais óbvios.

— Com ninguém. — E desligou o telefone.

Mas havia algo em meu peito. Uma flor havia nascido.

Dúvida.

A morte de qualquer relacionamento.

— Você estava tentando ir para a casa de alguém? De novo?

Você continuou a me encarar, sem falar nada. Um muro que eu tinha vontade de esmurrar. Era horrível quando você se fechava daquela maneira, e eu simplesmente tinha que acatar. Mas aquilo era um pouco demais para ignorar.

— Jesse… Não me faça pedir para ver seu telefone.

— Você é minha mãe agora, Alex?

A resposta cortou meu coração, a primeira das feridas. Porém, não aplacou o crescimento da dúvida. Como uma hera venenosa, entremeando-se em meu imo e em minhas palavras.

— Não sou, mas achei que…

achei que nós tínhamos algo

— E se eu estivesse?

Segundos antes de você abrir a boca, eu sabia a resposta. E, francamente, entre o saber e o não saber, a ignorância era realmente uma benção divina. Senti o ar voltar, e desejei, do fundo do coração, voltar para o multiverso em que era ignorante.

Mas eu sabia agora.

O vaso de hera venenosa estourado.

E teríamos que lidar com os cacos.

— Por quê? — Eu não reconheci a minha própria voz.

Eu não falava daquele modo. Mas era assim que você me afetava, Jesse. Era assim que eu me perdia em seus tons; e apesar de magoado, eu ainda queria entender. Queria penetrar em seu imo, e entendê-lo.

Você deu de ombros.

— Me deu vontade.

— Pelo amor de Deus, Jesse.

— Não achei que fôssemos exclusivos.

Bem. Você tinha um ponto ali. Em todas as nossas conversas e mensagens trocadas, nunca tínhamos colocado um nome no elefante no meio da sala: nossa relação. Ela apenas existia. Mas eu achava… eu realmente achava que…

— Eu achei que você gostasse de mim — sussurrei.

Mais um dar de ombros. Como eu queria te esmurrar.

— E eu gosto. Mas isso não tem a ver com sexo.

Eu ergui uma sobrancelha.

— Claro que tem a ver. Você transa com qualquer um?

Você ficou calado, e a realização me atingiu.

— Jesse…

— Era isso que você queria saber? — Seu tom era de mágoa e algo mais escondido, visceral. — Que eu não sou seu par perfeito? Que eu sou um fodido, que não mereço alguém tão perfeito quanto você?

Eu suspirei.

— Você não é um fodido, Jesse.

— Viu, eu ia transar com outra pessoa, e você ainda tenta ser um coach motivacional pra cima de mim! Isso me irrita, sai do seu pedestal, Alex!

— Eu estou irritado! — Esfreguei minha mão contra as minhas têmporas. Minha dor de cabeça ameaçava se triplicar. — Eu só não gosto de ficar brigando com a pessoa eu amo!

Isso certamente calou a sua boca. Me deu até vontade de rir, apesar da situação séria.

— Você me ama? — Seus olhos eram discos incrédulos. Eu me volvi para você, indo em sua direção, e toquei em sua cintura.

— Não estava óbvio?!

— Como eu ia saber se você não me fala?

— Eu sou meio lerdo pra essas coisas. Demoro para entender relacionamentos em geral. Meu último namorado dizia…

— Ótimo, você vai se declarar para mim e ainda falar de ex.

— Bem, de qualquer modo, eu também tinha problemas de comunicação com ele. E acho que entendo o porquê. Eu… eu só não quero ser qualquer um. Ou mais um. Eu quero ser seu único, Jesse.

Nós dois nos sentamos naquele pequeno quartinho de depósito, e ficamos nos encarando um pouco. A pouca luz que vinha da porta entreaberta, iluminava a sua respiração, e as batidas do meu coração se aceleraram.

Porra.

Eu tinha me declarado mesmo?

— E aí, não vai dizer nada?

Você ficou em silêncio, olhou para o nada por alguns instantes. E, depois, me encarou.

— Eu ainda ia dormir com outra pessoa.

— Sim. Acho que temos que discutir isso. Por que você ia fazer isso?

— Por que eu sempre faço isso quando…

— Quando?

Você se abraçou e se encolheu. Era um modo de proteção; ao menos, não estava correndo de mim. O que significava que eu tinha uma chance. Talvez mínima. Mas era tudo que eu precisava.

— Quando eu não aguento mais viver na minha cabeça. É uma forma de abafar os sons.

Fiquei em silêncio.

— Eu também?

— O quê?

— Você deitou comigo como uma maneira de aquietar qualquer coisa que esteja dentro da sua cabeça? Eu sou só mais um?

Não estávamos em completo silêncio, porque ainda conseguíamos ouvir os ruídos e risadas das pessoas no evento; e, por um momento, pensei em Dave, que deveria estar se sentindo sozinho e um pouco assustado de estar em um local tão grande com tantas pessoas. Talvez devêssemos evitar essa conversa e voltar. Talvez eu não quisesse ouvir a resposta.

a ignorância é uma benção

— Sim.

E a hera venenosa do meu coração foi arrancada violentamente, deixando-o a sangrar, e eu me deitei para morrer.

— E não. Ao menos, no início, foi sim. Mas eu… eu gosto de você, Alex.

Você abriu um sorriso tímido.

— Acho que também estou apaixonado por você.

E, do sangue, nasceu milhares de flores azuis e brancas e roxas e rosas; e enquanto dávamos as mãos, talvez houvesse um final feliz para nós, afinal.

— Mas somos exclusivos a partir de agora — eu reclamei.

Sua risada foi uma memória guardada em meu templo como um tesouro, adorada por meu sacerdócio no altar da minha alma. E quando seus lábios tocaram os meus, consumamos todos os ritos da nossa religião.

Tentamos sair do depósito de limpeza sem sermos notados, em um momento em que houve uma algazarra maior. Você disse que ia no banheiro se arrumar, enquanto isso, eu voltei para a mesa. Queria dizer que minhas feridas estavam saradas, mas era como um enfermo depois de uma cirurgia. Ainda dolorido, e um pouco fodido da cabeça.

Eu queria te entender.

No entanto, tudo que eu podia fazer era confiar.

A mesa estava mais calma. Aparentemente, as outras pessoas da mesa estavam em um papo agitado, e eu notei o problema de imediato.

Dave.

Merda.

Ele estava ansioso, olhava para os lados, e então para o caderno, sem escrever nada. Parecia prestes a ter uma crise, a explodir. E eu trocando uns amassos com Jesse no armário. Como ele ficaria ao saber disso? Eu não podia

abandoná-lo

e eu quase corri, mas vi a mão de Sam — embora estivesse conversando animadamente — achar a de Dave, e as duas se entrelaçarem. Vi a expressão surpresa de Dave, e então, um pequeno sorriso em seu rosto. Ele respirou fundo e pareceu relaxar. E, pela primeira vez naquela noite, o vi continuar a escrever, com as mãos ainda entrelaçadas ao outro.

Céus.

Será?

Que as coisas finalmente entrariam nos eixos?

Meu coração se encheu de esperança. Com você e eu finalmente em paz, e Dave entrando em um bom caminho… as coisas finalmente estavam melhorando. Isso me deixava terrivelmente animado.

Voltei para a mesa, e Dave estava radiante:

— Alex! Estou quase acabando!

— Que bom, Dave.

— Eu não aguento mais escrever vampiros mordendo virgens… — Samuel parecia enfurnado no teclado do seu notebook, com o rímel escorrendo pelo rosto inchado de sono; decididamente, já estava tarde da noite.

Ainda tinha muitos comes e bebes, e muitas horas de escrita pela frente, mas eu estava morto (só não tanto quanto as virgens de Samuel). Você apareceu logo depois, ajeitando o meu moletom, que em você ficava ridiculamente grande, mas, aos meus olhos, muito fofo.

— Eita, vocês dois sumiram por muito tempo — Dave comentou.

— Estávamos procurando comida decente. — Seu sorriso era diabólico, e eu sabia que estava mentindo para mim. Porque eu ainda não queria contar para Dave.

Mas ele estava tão bem… tão bem… talvez fosse a hora.

Eu me virei para abrir a boca, e palavras não saíram. Eu estava travado. Como eu diria a Dave que eu estaria me afastando mais dele? Meu amigo continuou a escrever, incauto, e eu olhei para você, sentado ao meu lado.

Por debaixo da mesa, você pegou em minha mão, e eu, até então, não reparei o quão eu precisava daquele amparo, daquele singelo toque. Respirei fundo.

Talvez outro dia.

E, no fim, Dave conseguiu terminar a tempo, seguido de um exausto Samuel que se jogou em cima do notebook, derrotado. Os sinos do local tocaram, indicando o final do evento.

E o final de novembro também.


Levamos Dave para casa; você ia para a minha. Era um hábito seu todas as vezes que queria evitar alguma coisa aparecer no meu apartamento, notei. Eu não me importava, porque apreciava a sua companhia. Porém, às vezes, eu queria que você falasse mais sobre os seus problemas, mesmo que fosse só para reclamar.

Saímos da biblioteca nas primeiras horas da manhã, enquanto ainda estava tudo escuro. Você caminhava ao meu lado, quieto, com o ar noturno a cair-lhe como um véu sobre os ombros. Estava adorável, e o ar de dezembro lhe tornava tão lindo quanto qualquer mês, mas parecia ser algo especial naquela noite.

Olhei para cima, e foi quando notei.

— Olhem! A primeira neve do ano — recitei.

— Droga. Vamos nos molhar — Dave reclamou.

— É bonita.

Ficamos parados um pouco na noite, observando os flocos de neve caírem sobre nós, e depois, seguimos. Não havia nada de especial e, ao mesmo tempo, não era nada comum. Talvez as situações só sejam especiais quando olhamos para trás, mas, vendo agora, eu consigo lembrar de como os olhos de Dave brilhavam ao ver a neve; e seu sorriso, Jesse, discreto, ao vê-lo chutar montinhos de lama em direção aos carros que passavam.

Era especial.

E não era.

E era tudo para mim.

Dave, animado, continuava a comentar do evento:

— E Samuel lidou com aquela briga tão bem… queria ter as mesmas habilidades que ele! Além de gerenciador de comunidade, ele também escreve muito bem, ele me mostrou alguns trechos do livro dele, e havia virgens mordendo vampiros também…

E embalados pelo som da voz dele, eu senti você segurar a ponta do meu casaco. Eu estava de mãos dadas com Dave, mas com a outra mão, eu entrelacei nossos mindinhos brevemente; e naquele pequeno espaço-tempo, eram apenas nós dois na rua escura, andando pela noite.

Ao chegarmos na casa de Dave, às primeiras horas da manhã, encontramos uma Sra. Kate (cinquenta e dois anos) tomando café na varanda da porta. Se eu era muito protetor com Dave, Kate era a mais coruja das mães. E não era sem motivo.

— Como foi lá, meninos? — Ela tinha um sorriso afável e um rosto cansado. Afinal, por ser enfermeira, eu tinha a certeza de que ela tinha acabado de voltar de um plantão de doze horas ou mais.

— Eu acabei o livro! — Dave correu até ela e mostrou o caderno.

O clima estava ótimo, e, francamente, era uma das noites que eu mais me lembraria. Olhei para você

os sinais

eu os perdi?

e para Dave, que encarava o celular. Imaginei se tratar de uma mensagem de Samuel, porque ele continuava a tagarelar, mas, repentinamente, ele ficou mudo.

— Vou entrar pro meu quarto — anunciou, e saiu correndo.

— Ué, não vai nem me mostrar alguma coisa do livro? — Sua mãe ergueu a xícara de café. — Eu passei o café agora, vocês não querem uma xícara?

— Aceito — eu disse. Quem era eu para recusar o café de dona Kate.

Porém, antes que eu pudesse me mover, Dave colocou uma mão no meu peito, me impedindo, e saiu correndo em direção às escadas.

— Dave? — nossa voz em uníssono perguntou em tons diferentes, mas o rapaz não chegou a ir muito longe; especialmente quando se curvou nas escadas e expeliu todo o conteúdo do seu estômago em cima do carpete.

— Dave! — Dona Kate deixou a xícara e correu para o filho. — O que você tem?

Dave parecia muito pálido de repente.

ele ainda tinha o celular em mãos

— Nada, mãe. Acho que comi alguma coisa estragada no evento.

— Mesmo? Bem, eu cuido das coisas a partir daqui, Alex. — Kate assumiu o papel de mãe, e acenou. — Podem ir.

Eu estava apreensivo, e não queria deixar Dave naquelas condições, mas já que ele estava com a mãe, ao menos, ele não ficaria sozinho. Você me puxou pela manga do casaco e, juntos, enfrentamos a noite.

Interlúdio

— Ele ainda estava com o celular.

Você não me respondeu. Seu olhar era azul intenso e gélido, e estava começando a me cansar com seus enigmas.

— O que fazemos com celulares? — foi a sua pergunta-resposta.

— Nos comunicamos com eles. — Dei de ombros. — Mandamos mensagens.

Sua expressão mudou para um sorriso lateral. Sabichão, sabido, esperto.

uma mensagem

— Esse foi o primeiro sinal?

Você se levantou e foi em direção à janela, em direção às hortênsias. Era uma visão e tanto: seu torso nu, e a tatuagem em suas costas parecia brilhar como os cosmos. Cada veia sua pulsava tal qual uma galáxia, e sua vida ressonava na minha.

estou vivo

estamos vivos

Você tocou em uma hortênsia, e ela explodiu em uma supernova.

— Existem primeiros sinais? Estava ali o tempo todo… quem não viu foi você.

E quando eu olhei para baixo, o cigarro em minha mão havia queimado por inteiro, sem eu dar uma tragada sequer.

O fogo queimou tudo.

o cheiro de cigarros, a queimadura

o quarto, a navalha

a ponte, o rio

eu

Eu respirei, e continuei a lembrar.

capítulo 9

joia profana

Dezembro veio, e com ele, a primeira neve do inverno. Chegamos na minha casa, e entramos no apartamento meio molhados, como acontece com toda neve. Todas as canções de amor de Natal falavam de como era linda a neve, mas ninguém mencionava a parte inconveniente dela, a parte da vida real.

Bem, essa parte não era tão glamurosa.

Tomamos banho, não juntos dessa vez. E uma vez que saí do boxe, cheio de pensamentos conflitantes, foi um ar fresco ver você com apenas meu moletom a cobrir o corpo em cima da minha cama; as pernas esguias expunham a pele alva e tentadora.

— Venha logo para a cama — você urgiu, e eu fui.

Coloquei uma calça de moletom e fiquei sem camisa, e aconcheguei meu corpo com o seu, debaixo dos edredons fofos. Dava para ver a neve cair por cima da estufa, e, por um momento, me preocupei com as hortênsias; porém, quando você beijou meu braço, tinha coisas muito mais importantes para se lidar agora do que a primeira neve do ano.

O ano em si poderia esperar.

Beijei seu pescoço, e senti toda a sua pele se arrepiar em resposta. Era muito bom o sexo, claro, mas ficar com você daquela forma também era muito delicioso, especialmente depois de termos estabelecidos nossas posições naquele relacionamento. Ainda não sabia se podia te chamar de namorado — mas, convenhamos, se éramos exclusivos, o que mais nós éramos? —; e, pela primeira vez, me permiti sonhar um pouco. Até porque eu queria saber mais sobre você. Queria entendê-lo.

E ser parte de você, da sua vida.

— Então… — comecei, enquanto você literalmente ronronava contra mim.

— Hm?

— Quais os planos para o feriado?

Você se contorceu contra mim, e soltou um suspiro pesado. Aparentemente, eu havia tocado em um tema sensível. Mesmo assim, você continuou abraçado comigo, com suas costas para mim; eu não conseguia ver sua expressão.

— É complicado — você resmungou.

— Tem algum tempo até o Natal — brinquei.

Você suspirou, e ficamos em silêncio por um longo período, em que achei que você tinha caído no sono, mas sua voz voltou a falar, alta e clara.

— Eu não me dou bem com o meu pai.

Eu beijei seu ombro.

— Somos dois, então.

— Quid pro quo, então.

Soltei uma risada, porque era típico seu. Você se afugentava das respostas, mas as queria do mesmo jeito. Era muito bom ver você também interessado em minha vida, nas minhas coisas. Me enchia de esperanças e estrelas.

— Devo começar então?

— Por favor, sr. Alex.

Encostei a testa em seu ombro, e deixei as memórias virem; elas não eram fáceis, nem um pouco. E, no fundo, eu sabia que esse momento chegaria, contudo, era exatamente assim que eu o imaginava: em um local confortável e protegido, em que poderíamos despejar nossos sentimentos um no outro. Não era um filme, era normal;

você fantasia demais, alex,

e era isso que importava.

— Não sei se mencionei que minha mãe é falecida.

— Acho que sim. Mas não falou do que.

— Foi um câncer de fígado, quando descobrimos já era tarde demais. Acabou morrendo muito rápido. Conheci Dave um pouco depois. Eu era babá dele, antes de ele ser “Dave”. Mas, no fundo, eu já sabia, porque ele não se encaixava em nada. Eu era um moleque na época, devia ter uns doze anos, mas andava com uma galera bem mais velha, e que não tinha uma ideia de futuro muito melhor do que ser trombadinha ou entrar para uma gangue. Meu pai ficava muito preocupado com isso, mas eu não sabia lidar com meus sentimentos.

— Ah, por isso a tatuagem.

— Foi uma estupidez. — Eu toquei meu rosto, uma constante memória dos erros que cometi contra as pessoas que eu amava.

Você se virou para mim e, com os dedos esguios, traçou os contornos em minha bochecha com delicadeza e amor. Eu fechei os olhos e me permiti me deliciar com aquele contato.

— E seu pai…?

— Ele queria que eu frequentasse mais a igreja, especialmente porque eu estava levando o filho da amiga dele para o mau caminho. E lá vamos nós, as duas famílias para as missas dominicais. Era um tormento ter que me arrumar direitinho. Eu olhava para o teto e desejava que um meteoro caísse e acabasse com o meu tormento. Bem, aconteceu algo parecido.

— Sério?

— Nós sofremos um acidente de carro a serviço da igreja. Meu pai saiu com uma perna ruim, acho que ele ainda não consegue andar sem mancar. Eu saí sem nenhum arranhão. Dave e Kate ainda tem algumas cicatrizes.

Pela sua expressão, era óbvio que era uma surpresa. Era o que geralmente as pessoas demonstravam quando você contava que aos catorze anos você sofreu um acidente de carro, mas…

— Você não tem problema com isso?

— Francamente, eu mal me lembro de tudo. Foi tudo tão rápido…

não foi rápido

doze horas dentro de ferragens

o gotejar do combustível

a mão de Dave segurando a minha

por favor, não solte a minha mão

não vou soltar

nunca mais solte a minha mão

— E foi ruim, não me entenda mal. Mas eu não consigo me lembrar de tudo com todos os detalhes. Foi há tanto tempo também.

— Por causa do trauma que você não consegue lembrar?

Dei de ombros.

— E importa se eu consigo lembrar ou não? O que importa é que estou vivo, aqui, com você.

Mas meus pensamentos foram até aquele homem, naquela casa ainda, com o cair de poeira em retratos e roupas ainda em guarda-roupas, uma casa imutável, parada no tempo.

— Meu pai não reagiu da mesma maneira. Ele nunca conseguiu superar a morte da minha mãe, que era a melhor amiga dele, além de companheira. Eles tinham uma relação muito forte, invejável. Mas quando ela se foi, ele se perdeu. Ele ainda trabalha, faz uns bicos, mas ele passa a maior parte do tempo reclamando de um tempo que já se foi e que não vai voltar mais. E ele não consegue ver que seu filho está bem na sua frente, disposto a ter uma relação; ele é muito teimoso.

Sua risada era preciosa.

— Por que está rindo?

— Seu pai deve ser igualzinho a você.

— Ai, não, espero que não. Ele está ficando calvo, e eu ainda quero manter esta juba aqui… — E passei as mãos pelos meus cabelos ruivos, e você fez o mesmo, seu olhar brilhava contra os lençóis escuros. Era como se a própria lua cheia tivesse uma irmã e estivesse deitada em um manto de estrelas e escuridão. — E você?

— Eu?

— Sua família. Quid pro quo, pra citar Hannibal Lecter.

Foram muitas reações em seu rosto, e vi o quanto era complicado para você. Mas, ao respirar fundo, você abriu a boca e a voz de anjos começou a falar dos problemas no paraíso.

— Meus pais se divorciaram quando eu e Chase éramos mais novos. Tínhamos uns onze anos, acho. Meu pai ainda mora na mesma casa onde nasci, e minha mãe arranjou uma moradia na mesma rua, a rua das Margaridas. E embora minha mãe tivesse a guarda, eu escolhi ficar com o meu pai. Porque… eu fiquei do lado dele na briga. Minha mãe era paranoica, mexia no celular do meu pai, brigava com ele todas as vezes que ele recebia a mensagem de alguma amiga, quebrava coisas. Não foi uma época fácil para nós.

“Chase ficou com minha mãe desde o princípio, e achou um absurdo eu ter tomado o partido do meu pai. Brigamos também. Ainda nos víamos na escola, mas não muito, tínhamos poucas matérias juntos. E, aos poucos, esqueci que sequer tinha um irmão gêmeo. Descobri um novo mundo, amigos, pessoas. Meu pai conheceu outra mulher, e se casou em pouco tempo. Ela tinha uma filha: Hayley.

“Hayley é mais nova que nós, mas é a cara do meu pai. Tem os mesmos olhos azuis da família. Depois de um tempo, ficou inegável a semelhança e eu perguntei. Meu pai simplesmente respondeu:

“Achei que você já soubesse.

“E foi isso. Achei que você já soubesse. E nesse espiralar, eu definhei aos poucos. As brigas aumentaram. Eu percebi o erro que cometi, e tentei falar com minha mãe, mas ela ainda estava muito magoada. E Chase… eu tirei nós dois do armário quando meu pai me pegou em uma situação indelicada com um rapaz no meu quarto da casa dele. E devo dizer que meu pai é extremamente homofóbico. Não foi uma experiência boa. Ele me expulsou de casa, e por isso voltei a morar com a minha mãe. Mas ela ainda se ressente de mim, meu irmão está magoado, e eu não tenho uma casa, um lar de verdade.

“Então o resumo é isso. Não tenho um lugar para o qual voltar, e frequentemente ando por aí”.

— Foi aí que o hábito de dormir com pessoas aleatórias apareceu?

Você deu de ombros. Justo.

— Ao menos era um teto sobre minha cabeça.

— E você vai passar o Natal com eles?

— Acho que vou passar com a minha mãe. Eu sei que ela costuma dar uma festa do trabalho todos os anos, só que não sei o que ela fará este ano. Francamente, ainda não sei o que farei. Talvez apenas perambule por aí, olhando a neve.

O que era uma visão muito triste de se ter. Você merecia mais. Muito mais do que tudo aquilo que aquelas pessoas poderiam te oferecer.

Uma ideia me acometeu.

Uma ideia profana.

— Fique aqui.

— Você vai me abandonar também? — você fez um muxoxo.

— Acalme-se, padawan. Tudo a seu tempo.

E vasculhando minhas gavetas, achei a joia perdida.

— Abra as mãos.

— O quê?

— Abra.

Sem entender, você fez uma concha com as mãos, e eu entreguei-a: profana, maldita, amaldiçoada, e completamente metálica. Uma diminuta chave.

o sinal

— O que é isso?

— Achei que fosse mais esperto que isso, Jesse.

Você arregalou os olhos.

— Você está me dando uma chave para o seu apartamento? Alex…

— Olha, eu sei que a gente se conhece tem pouco tempo, mas… eu não quero que seja porque é romântico. Eu quero que você sinta que, mesmo que não exista lugar para você retornar, você sempre pode voltar pra cá. Eu estarei esperando; e se eu não estiver aqui, eu virei correndo te encontrar. Isso eu posso prometer, acima de tudo. Eu te amo, Jesse.

Sua boca estava aberta, o que era bem cômico, mas seus olhos se encheram de gratidão e lágrimas; vi você me puxar para o abraço mais terno que já me envolveu na vida. Eu o acolhi, e juntos, abraçados, demos às boas-vindas ao inverno, à paixão, e, depois, ao sono dos justos.


Quando acordei, você não estava mais lá, mas tinha um motivo desenhado em um bilhete ao lado do meu celular morto. Eu estava definitivamente precisando de um novo; e depois de colocá-lo para carregar, eu me deliciei passando um café enquanto lia e relia aquele pedacinho de papel.

Jesse: Não vá acordar muito tarde!! Depois nos vemos, tá? Me manda mensagem quando você acordar, seu dorminhoco. Amo você.

E aquilo era o suficiente para alimentar mil Sóis de tão precioso. Eu queria emoldurar e colocar na parede, apenas para poder olhar aquele pedaço de papel todos os dias.

Quem diria, Alex Morris, completamente de quatro por um macho com metade da altura dele, mas que tinha roubado meu coração de forma completa e irredutível.

Era isso o que chamavam de amor?

Se fosse, eu nunca tinha sentido com qualquer outra pessoa. Eu estava nas nuvens, e não queria deixar de ter aquela sensação nunca. Queria sentir mais da sua pele, sentir como você se tocava contra mim; e cada memória era um raio de sol a afugentar o frio do inverno.

Meu celular finalmente ligou, e eu encarei a realidade com sofreguidão. Enquanto recebia as atualizações do dia, terminei meu café, e deixei a xícara em cima do balcão. Foi bom que eu o fiz, porque a mensagem que apareceu em negrito, além de todas as chamadas perdidas, foi o suficiente para me fazer ter um ataque de pânico.

Samuel: Alex, o Dave foi para a sua casa? Ele não apareceu para nosso encontro…

E antes que eu pudesse dizer algo, eu sabia que alguma merda tinha acontecido.


Cheguei em casa depois do trabalho, e o lugar estava em silêncio mais uma vez. Nama não deveria estar em casa, e, sinceramente, era melhor assim. Poder evitar o inevitável mais uma vez era uma possibilidade muito boa. E, aos poucos, era assim que nós vivíamos: empurrando os problemas montanha acima, esperando que nunca viria o ponto em que teríamos que lidar com eles ladeira abaixo.

Quando andei pelas escadas, consegui ouvir o barulho distinto de videogames sendo jogados, e eu sabia que Chase estava em casa; ele sempre parecia estar em casa nos momentos errados e em que eu queria paz.

Mas talvez…

Eu quisesse falar com ele dessa vez.

Aproximei-me da sua porta e dei duas batidinhas. Esperei ele responder, mas não veio nenhuma resposta, então comecei a ir em direção ao meu quarto quando a porta se abriu de repente.

— Que foi, mãe… ah, Jesse! Que susto! Achei que era a mamãe! — Ele sorriu ao me ver. — Está voltando da casa do Alex?

— Do trabalho — resmunguei. Mas então…

Por que não dar um voto de confiança?

Por que não tentar mais uma vez?

 — E eu dormi na casa dele sim.

O sorriso dele aumentou, se é que isso era possível.

— As coisas estão ficando sérias, né?

Eu senti meu rosto corar, e nem consegui elaborar uma resposta direito, porque estava completamente envergonhado. Apenas assenti, o que pareceu apenas encorajar o engodo do meu irmão ainda mais.

— Entendo, entendo. Você gosta dele, né?

— …Muito.

— Quê? Mesmo?! — E Chase me segurou pelos ombros. — Isso é um milagre! Você se apaixonar por alguém!

beijos trocados debaixo do edredom

promessas

— É, acho que sim. — Dei de ombros.

— Isso é fantástico! Vamos sair em um encontro duplo, eu e Mitchell, você e Alex!

— Não é para tanto, Chase… — Mas fiquei me perguntando se não era justo o tipo de breguice que faria Alex superfeliz, então fiquei inclinado a aceitar.

Meu celular começou a vibrar no bolso, e eu sorri ao ver quem era.

— Ah, é ele? Atende, atende! Vamos chamá-lo!

— Chase… oi, Alex, como você está? Dormiu bem?

— Jesse… o Dave sumiu. Eu não sei onde ele está. Ele não está em lugar nenhum.

E eu olhei para o meu irmão, sem saber o que fazer, o celular e os planos para o encontro completamente esquecidos.

capítulo 10

meu amor, tão doce

Alex estava em frangalhos quando chegamos à casa de Dave.

Eu nunca tinha o visto tão abalado assim. Estava sentado na varanda da casa, com o rosto entre as pernas, sem prestar atenção ao seu redor. Dona Kate estava no telefone, nervosa, aparentemente gritava com a polícia para reportar um boletim de ocorrência de pessoa desaparecida; enquanto Samuel parecia o meme do John Travolta, com suas roupas formais e mala de notebook em mãos.

— Íamos nos encontrar para editar nossos livros — ele explicou quando chegamos. Ele parecia o menos agitado de todos, porém, isso não era dizer muito, porque ele também parecia nervoso. Toda a hora passava a mão nos cabelos e os tirava do lugar. — Ele não apareceu e nem atendia as minhas ligações. Eu não sei o que aconteceu, ele confirmou ontem que vinha.

— Eu não sabia — Alex murmurou. — Eu não sabia que ele ia sair… ele também não foi na terapia ontem. E disse para Kate que iria dormir na minha casa…

Dave não ia para lugar algum sem Alex saber…

Eu me aproximei de Alex e o abracei. Ele se afundou contra mim, e eu conseguia tocar em seu desespero de tão palpável. Suas mãos se fincaram em meus ombros, e achei que ele fosse chorar, no entanto, apenas me abraçou; ficamos ali por alguns longos minutos enquanto tentávamos elaborar um plano de ação.

Dona Kate voltou para a varanda.

— Eles não podem emitir o boletim sem quarenta e oito horas de desaparecimento, mas… — Ela mordeu o cabo do telefone, nervosa. — Sabemos que não temos quarenta e oito horas, meninos. Oh céus, meu menino, onde você foi?

E ela começou a chorar, as mãos cobriram o rosto em desespero.

Alex se levantou e a abraçou.

— Eu vou encontrá-lo, Kate.

E começou a ir em direção à rua.

— Onde você pensa que vai?

— Vou procurá-lo por aí. Ele pode estar perdido, desmaiado em algum lugar…

— E você vai com o celular nesse estado? — Eu apontei, e ele mostrou o celular descarregado. — Não, eu vou com você.

— Jesse… — Chase suspirou. — Vamos procurar por ele então. Nós quatro. E nos reunimos aqui nessa casa daqui a uma hora. Ele não pode ter ido muito longe, sem dinheiro e sem meios de transporte. Ele deve estar aqui por perto.

Kate acenou enquanto nos via partir, e sentou-se na varanda, esperando, enquanto íamos em busca de Dave.


Não sei por quanto tempo eu corri, mas o tempo todo eu gritei pelo nome de Dave, e as pessoas olhavam para mim como se eu fosse louco. Eu parava as mais incautas para perguntar se viram um rapaz gordo de cabelo lilás, porém, minha aparência era tão absurda que afugentava os transeuntes, e eu sabia que era fútil.

Foi mais de uma hora que corri, e sabia que me atrasaria para voltar. Mas algo me fez correr mais, e para longe. Foi o mar que me chamava, e quando vi, estava no porto, olhei os grandes cruzeiros passarem, e os casais tomarem o chá da tarde nos bistrôs. E perto do caís…

Um jovem, de cabelos lilás, arfava e tinha as lágrimas em formato de estrelas cadentes.

Eu não sabia como tinha sido eu que tinha o achado, mas eu sabia que tinha que ter sido eu. De todas as pessoas, era eu quem tinha que ter encontrado Dave naquele porto, assim como Alex me encontrou naquela ponte.

— Dave! — Corri até ele e o amparei. Ele estava, obviamente, desidratado, e chorava muito, além de arfar. Parecia estar tendo um ataque de pânico. — Droga.

— J-Jess… Jesse…. eu encontrei com ele. Eu encontrei… com ele. E ele…

— Não fale agora. — Eu o abracei, enquanto, com a outra mão, tentava mandar uma mensagem para o meu irmão dizendo nossa localização.

— Ele é uma pessoa horrível…

— Quem, Dave? A pessoa que te levou?

— Ele é horrível…

Murmurava as mesmas coisas, e foi assim que fomos achados.

Alex olhou para nós, e eu nunca o vi tão derrotado. Quando Dave viu Alex, ele se jogou em seus braços

— Alex… Alex, por favor…

Alex o acolheu, as mãos trêmulas contra as costas do outro.

— Por favor, não me deixe. — Foi o murmúrio baixo que saiu dos lábios de Dave. Os dois ficaram assim por vários minutos, apenas ouvindo a respiração pesada de Dave, que continuava a chorar e balbuciar várias incoerências; enquanto Alex o agarrava e murmurava vários pedidos para que Dave não fosse embora ainda.

Era impossível penetrar na relação deles.

E era mesmo.


— Dave dormiu?

Alex estava na cama, com o meu telefone sendo usado para uma chamada de vídeo, enquanto ele falava com Dave e o acalmava. Dona Kate o fez ficar em casa, e Alex, eu e Chase voltamos para o apartamento para comer algo. Chase se ofereceu para ir comprar comida em um fast food próximo, e eu tinha acabado de sair do banho quando olhei para meu

namorado?

caso atual ficar de namoro com outra pessoa, apesar de eu saber que não era bem isso do que a situação se tratava. Mesmo assim, os ciúmes surgiam.

eles têm uma relação impenetrável.

não tem lugar para você.

— Ele tomou remédios — Alex explicou. — Para ajudar a dormir.

— Imagino que Dona Kate vá tomar também. Ela estava derrotada hoje.

— Todo mundo precisa de vez em quando.

Eu dei de ombros.

Alex deixou o celular cair na cama, terminando a ligação de vídeo, mas não se moveu da cama. Eu me sentei ao seu lado e puxei o celular para longe.

— O que está pensando?

— Minha cabeça é um lugar horrível agora, você não quer estar nela. — Não havia um pingo de comédia em sua voz.

— Entretenha-me. Um beijo por pensamento.

— Acho que meus pensamentos não valem seus beijos, nem um pouco de longe…

— Vamos. Fale o que está sentindo.

Alex suspirou.

— É que… por um momento, tudo me pareceu tão… perfeito, sabe?

— Perfeito?

— Eu e você… Dave e Samuel… e Dave indo tão bem. Melhorando no tratamento. E, de repente, dá um ataque desses. Tem horas que eu não sei se aguento muito mais disso, sabe?

— Às vezes você sente que Dave é um fardo?

E aquela era sua confissão secreta.

Dizer as palavras foi o suficiente para tornar real os sentimentos que habitavam nele, cristalizá-los em forma física e pristina, e expô-los ao mundo. Sim, era verdade.

Era verdade.

E doía pensar aquilo.

As lágrimas começaram a surgir no rosto de Alex, e eu sabia que tinha pegado em um ponto muito pesado; simplesmente o abracei, o enlacei, o cativei, o aprisionei dentro de mim com o que havia de forças restantes em mim e o beijei. Primeiro, para secar suas lágrimas, depois com amor, e uma terceira vez, com fome de seu ser. Ele correspondeu, tão sedento de mim quanto eu dele, e não esperou nem eu retirar minha calça de moletom, apenas encaixou-se contra mim, colocando-me em seu colo, e, de repente, em nossa sofreguidão, éramos um pela primeira vez. Vistos de corpo e alma, nossos íntimos nus e expostos para a visão do outro. E enquanto ele derramava lágrimas, eu as secava, porque ele fazia o mesmo comigo. E nós nos amamos em um ritmo lento, em um desespero afã; e meus pulmões se tornaram a galáxia, cheio de estrelas e mordidas. E, no fundo, não importava.

Porque tínhamos nós dois.


— Chase está vindo.

— Demorou pra vir. — Alex tomou uma ducha rápida depois que eu me limpei. Ele secava os cabelos e voltava para a cama enquanto eu checava o celular.

— Teve um atraso na cozinha. E ele ficou com preguiça de ir em outro restaurante.

— Ele também esteve correndo, né. Coitado, deve estar morto.

— Ofereça pra que ele tome banho aqui também.

— Hm, gêmeos…

Eu joguei um travesseiro na cara dele.

— Nem pense nisso.

— Já é tarde, pensamento formado. Aliás, Jesse…

— Sim?

— Eu te amo.

A declaração me deixou sem chão de novo, mas eu devia me acostumar com esses arroubos repentinos por parte de Alex. Ele parecia ser um homem muito romântico mesmo. Alex se aproximou e pegou em minhas mãos.

— Eu quero gritar para o mundo que você é meu, mas…

Ah.

Sempre tinha um “mas”.

— Não queria falar ainda para o Dave. Ele está fragilizado. Eu quero ter uma conversa direito com ele, descobrir o que aconteceu para ele fugir, e então contar para ele de nós. Não é como se ele não desconfiasse, mas… não sei o que mais pode fazê-lo surtar.

E não queríamos outro surto, não era mesmo?

Pobre garoto doido que não sabia lidar com as coisas.

Eu apenas assenti. O que eu poderia fazer? Alex me abraçou, e eu sabia que estava entregando meu coração em suas palmas para ele fazer o que quisesse com ele. Eu só não esperava me arrepender…

interlúdio

— Este foi o meu erro então.

Você encarou suas unhas, na escuridão da galáxia. Sem sons, sem distinção, apenas desdenho. Enfadonho sequer cogitar quais seriam meus erros, mas o desespero agitava a minha garganta em pequenas ondas, a arranhava; e eu estava no meu limite.

Você não se importava.

— Não existem culpados — você falou, mas havia, e deveria haver.

Em um mundo perfeito, a Terra giraria em torno de nós dois, mas, naquele momento, eu e você estávamos em crise; a temperatura subia, e você simplesmente quebrou.

Sua visão, cruel como uma promessa, apenas me olhou com o infinito; e eu vi o abismo, minhas lágrimas começaram a descer.

— Desculpe… — comecei a murmurar.

Desculpe, desculpe, desculpe, desculpe, ecoou

— Não o desculpo. — Você se aproximou de mim, e eu caí para trás na cama. Escondi meu rosto com as mãos, a vergonha me cortando. Sua face estava a centímetros da minha, e, se vivo, sentiria sua respiração quente. Ao invés disso, senti o hálito gelado da morte, e de minha própria culpa.

— É isso o que você quer ouvir, Alex? É assim que quer expiar seu pecado? — E trouxe suas mãos até meu rosto, suas unhas impecáveis arranhando minhas bochechas e criando vãos avermelhados pelo caminho, a raiva em sua voz.

— Você só quer lembrar das coisas boas. De todas as partes em que nos amamos, e toda essa baboseira romântica. Para expiar a sua culpa, você tem que lembrar do fim — suspirou —, da parte em que você é culpado.

E de sua boca aberta, começaram a sair um tornado de palavras, afiadas o suficiente para cortar minha pele, mas o dano que elas causavam mais eram em minha mente culposa; e eu vi, e eu lembrei.

capítulo 11

colapso

Kurt: Cadê você, sumido? Puteando por aí?

Hayley: Jesse, você vem para o jantar de Natal? Por favor, todo mundo tá te esperando! Papai mudou de ideia quanto a você, eu juro.

— Você também recebeu?

Eu estava no meu quarto. Faltavam três dias para o Natal, e eu ainda não tinha decidido se respondia ou não a mensagem da minha meia-irmã. Assuntos sem resolver continuavam do mesmo jeito: problemas ladeira acima. Minha mãe havia organizado uma pequena festa para os companheiros de trabalho na véspera, e nós éramos esperados para comparecer, mesmo que nem por uma hora, nas palavras dela. Depois, estávamos livres para fazer o que quisermos. Aquilo era menos sofrido do que tentar uma aproximação com meu pai.

— Recebi.

— A cara de pau nem arde, né?

— Ela é legal, Chase.

Ele suspirou e passou a mão pelos cabelos, denotando nervosismo.

— Eu sei. Mas é difícil, especialmente com toda a situação. Preferia tê-la conhecido de outro jeito. Não sei se vou conseguir aceitá-la nunca em minha vida.

— Assim como não vai conseguir me perdoar?

Mas ele sorriu.

— Eu já te perdoei, irmão. Aliás, falando nesse assunto, eu queria discutir algo com você.

Odiava quando as pessoas falavam que queriam discutir algo comigo e simplesmente pausavam, ou olhavam o celular, como era o caso de Chase. Eu ficava completamente perdido e ansioso, e mil cenários começavam a aparecer na minha mente. Mas ele foi gentil e parou para me encarar, com um sorriso ainda mais largo no rosto.

— Eu e Mitchell vamos sair do armário pra mamãe.

— Para Nama?

— Sim.

Dois sentimentos me atingiram:

ciúmes

inveja

Ciúmes por causa de Mitchell e Chase, separadamente. Mitchell porque, um dia, ele me fez uma promessa, e agora, a cumpria com Chase. Chase, por ser meu irmão, e ter achado um rapaz que o fazia feliz.

Inveja… porque eu nunca teria aquilo com Alex.

Eu sempre seria seu segredo.

Eu sabia que não era de propósito, lógico. No entanto, se aquelas últimas semanas provaram algo, é que Alex não tinha a intenção de me declarar como seu para o mundo. Ele estava muito confortável em manter nossa relação em segredo. Eu não queria nenhum outdoor, porém, queria chamá-lo de meu namorado, e fazer coisas juntos. Mas não. “Dave era muito frágil”, ou “o momento não é propício”. Quando o momento seria? Eu não sabia.

E, francamente, aquilo me corroía a cada dia.

Mas, de novo, apenas olhei para Chase e sorri.

— Que bom pra você, irmão.


Véspera de Natal.

Data aconchegante para namorados passarem juntos.

E o meu namorado estava na casa de Dave.

Alex: Prometo que vou passar aí amanhã e iremos sair,

era o que a mensagem dizia.

Eu te amo.

E um emoji de coração. Mas não tinha sentimento algum, e eu estava cansado de ser preterido. Eu nunca seria o número um da vida do meu namorado, e teria que lidar com isso ou me separar dele. O que era uma pena, porque eu o amava. Droga. Por que relacionamentos eram tão difíceis?

— Que cara feia é essa, filho?

Minha mãe se aproximou com uma travessa de salgadinhos. Ela se divertia bastante, e estava trajada como Mamãe Noel; todos os colegas de trabalho dela estavam ou bêbados, ou conversando mais alto que a música natalina do local. Eu estava emburrado em um canto.

— Nada, mãe.

— Coma algo, isso tem cara de fome.

— Mãe…

Chase apareceu do nosso lado, e eu soube que esse era o momento.

— Mãe, pode ir conosco pra a cozinha?

Ela assentiu, e fomos. Eu fiquei mais perto da porta, mordiscando um salgado, enquanto Chase sentou com nossa mãe e começou:

— Mãe, tá, eu imagino que a senhora esteja se perguntando o porquê de eu tê-la chamado…

— Você quebrou algo?

— Não, espera…

— Tem alguém doente? Alguém morreu?

— Mãe, não.

— Então para que todo esse enxame, menino?

— Mãe… eu e o Mitchell estamos namorando.

Ela ficou em silêncio por alguns minutos. Olhou de mim para Chase, e quando finalmente disse algo, foi com um leve sorriso no rosto.

— Ai, ai, vocês, meninos… deveria ter imaginado. Ele te faz feliz?

— Como ninguém nunca fez.

— Que bom. A partir de agora ele está proibido de dormir aqui.

— O quê?!

— Minha casa não é um antro de putarias, Chase.

— Mas mãe…

— Eu nem quero saber o que vocês fazem naquela cama. Você vai lavar seus lençóis a partir de agora.

— Mãe!

E ela se virou para mim, acusatória.

— E você, tem algo para me contar?

Eu olhei, minha boca se abriu e

por favor, não vamos contar a ninguém

— Não, senhora. Não tenho.

interlúdio

Minhas lágrimas corriam por rios, e preenchiam aquele apartamento, sufocando-me e afogando-me. Em breve, seria levado pela correnteza.

eu vi você cair

— Não… por favor, não continue. Eu não quero lembrar mais.

— Foi você quem escolheu revirar o passado. E, no fundo, não importa.

Foi você quem me deixou cair.


Aquela casa ainda me assustava, depois de tanto tempo. Número onze da rua das Margaridas. Ele tinha câmeras na varanda, por isso tinha me visto da primeira vez. E desta, foi Hayley quem abriu a porta e me recepcionou, animada.

— Jesse! Que bom que veio!

— Quase não vim, pra falar a verdade.

— Chase não quis vir, né?

— Você o conhece.

Ela suspirou, mas me deixou entrar mesmo assim. Começamos a falar sobre uma série que assistíamos juntos antes daquilo tudo, e ela me levou para a cozinha, onde a mãe dela cozinhava. Lucinda era uma mulher séria, e que dificilmente você cruzava o caminho dela. Ela colocava meu pai na linha, e eu tinha muito medo dela na infância. Extremamente religiosa também. Quem enfeitara a casa de símbolos religiosos fora ela, especialmente agora, na época de Natal.

— Jesse. — Ela pegou na cruz que carregava no peito e depois me abraçou. Mas bem brevemente, e voltou a lavar as mãos e cozinhar. — Que bom que veio, menino Jesus te trouxe aqui.

— É… — Dei de ombros.

— Pode ir para a sala de jantar, seu pai está lá, eu já vou servir o jantar.

Segui para a sala com Hayley a tiracolo, e vi o homem

imenso aterrorizante amedrontador

sentado, lendo algo no celular.

Ele não sorriu ao me ver.

— Está mais magro. Aquela mulher não te alimenta direito?

— Ah, pai.

— Você tem que malhar mais, senão fica parecendo uma maricas.

— Pai… — Hayley veio em minha defesa.

Fiquei calado e sentei-me à mesa. Eu não queria estar ali, mas eu ainda queria tentar. Eu convivi com aquelas pessoas por tanto tempo, e elas eram a minha família, para o bem ou para o mal. E talvez ainda houvesse esperanças.

— Certo, certo, vamos comer.

Lucinda pôs a comida, e começamos a nos servir. Ela nos parou, no entanto.

— Precisamos orar ao Senhor.

Bem, tinha isso.

Demos as mãos, embora fosse extremamente enfadonho de minha parte. Eu sabia a letra, mesmo assim, apenas murmurei a oração enquanto Lucinda era a voz mais presente; embora meu pai também estivesse bem emocionado.

Comemos em silêncio, até que notei que meu pai me encarava, um pouco emocionado. Era estranho. Meu pai não se emocionava por muitas coisas, ele não era de chorar em público.

— Pai?

— Jesse… eu estava pensando. Eu estive errado esse tempo todo em te expulsar de casa.

Meu coração começou a acelerar. Um arco de redenção? Seria possível? Era realmente um milagre de Natal.

— Queria que seu irmão estivesse aqui, porque preciso dos dois aqui comigo, e vocês precisam de uma figura paterna que preste. Não sei que tipo de homens Nama traz para a presença de vocês, mas eu sempre tentei ser um pai presente, um macho viril. E agora que vocês estão doentes…

Doentes?

— Mas eu não estou doente, pai.

Ele colocou uma mão sobre a minha.

— Acalme-se, filho. É o demônio dentro de você falando. Não se preocupe. Vamos tirá-lo de você, e você voltará a ser meu filho.

Meus olhos se arregalaram e eu me afastei dele.

— Eu não estou doente por ser gay, pai.

— Está sim! — A voz dele reverberou pelo eco da sala de jantar, e eu me encolhi quando ele bateu a mão na mesa. — Você está doente! Aceite que vamos te curar!

Eu me levantei, mas meu pai também o fez.

— Acho melhor eu ir…

— Você não vai a lugar algum.

E me puxou pela manga do meu casaco. Meu pai sempre foi mais forte do que eu, mesmo assim, eu lutei. Tentei me desvencilhar, correr, chutar, morder. Porém, ele era uma força imparável, e antes que eu visse, estava de volta ao meu quarto, com as minhas coisas; só que, dessa vez, tinha uma tranca que eu nunca vi antes em minha porta.

E fiquei preso dentro do que antes era meu pequeno pedaço do universo.

Olhei em volta do quarto escuro. Os meus vários funkos, minhas figures e meus livros, todas as coisas que um dia compuseram o meu ser, mas que, agora, pareciam apenas uma memória distante de uma outra pessoa. Com meu pulso acelerado, eu só pensava em escapar dali. Tentei a janela e ela também estava trancada.

Peguei meu celular e tentei ligar para Alex.

Caixa postal.

Droga, Alex, isso era hora para seu celular estar descarregado?

Ele já devia ter comprado outro!

Liguei mais uma vez e nada.

Liguei outra, e ele atendeu, mas, dessa vez, alguém desligou a ligação.

O peso da traição caiu em meu estômago.

Ótimo. Eu estava sozinho nessa.

Olhei pela janela e vi a salvação: a janela do vizinho acesa. Liguei para o outro número que costumava me salvar nessas horas.

— Oi, sumido.

— Kurt, caralho, vem pra minha casa.

— Ei, teu pai é do caralho, você quer ser morto? Não lembra quando ele te pegou comendo o Mitchell?

Eu murmurei baixinho:

— Não é pra isso, meu pai acabou de me prender no meu quarto e ele falou que quer me converter, sei lá, eu só sei que estou preso e preciso sair. Venha me salvar, por favor?

— Puta que pariu. — Ouvi ele se levantar e revirar o quarto. — Tô indo sim.

E em poucos segundos, do lado de fora da minha janela, estava o homem. No escuro, ele parecia um trombadinha; especialmente porque segurava um kit de ferramentas, e, com ele, conseguiu abrir a janela pelo lado de fora.

— Obrigado — murmurei, já liberto.

— Agradeça na minha casa, precisamos correr ainda.

E em silêncio, descemos a trepadeira e corremos até a casa de Kurt, a adrenalina em minhas veias explodia e criava estrelas. Eu respirava fundo, na tentativa de recuperar meu fôlego no quarto de Kurt; e pensei em como aquela situação toda ficou daquele jeito. Eu nunca mais poderia falar com meu pai, ele era um louco. Eu só sentia pena de Hayley, porque ela ficava ainda no domínio dele, e era filha dos dois. Nunca poderia sair plenamente do convívio com eles.

— Que maluquice… — eu disse, e então, Kurt me beijou e me prendeu contra ele.

Senti o gosto de álcool e más decisões.

Não correspondi ao beijo, mas não o afastei, pois estava em choque. Kurt continuou em cima de mim, e começou a me levar para a cama.

— Não, Kurt.

— Não? Conta outra. — Ele riu, e começou a beijar meu pescoço. — Vamos, não foi excitante escapar das garras do seu pai conversor de gays? Vamos provar para ele que não existe coisa melhor. Vamos gravar e mandar para ele, que tal?

— Para, Kurt.

— Vamos, loirinho. Você sempre diz ‘não’, mas sempre quer no final. Por que agora é diferente?

E ele me deitou na cama, e eu encarei o teto estrelado e vazio, assim como meu interior.

interlúdio?

— Para.

Eu estava sem ar. Minhas lágrimas tomavam a forma de duas mãos e me estrangulavam, e era Jesse quem morria.

eu vi você cair

— Eu não quero continuar.

— Mas a história continua. Não é porque você não quer lembrar que não aconteceu. Suas memórias são um poço infinito de pequenas magoas, e é delas que nasce a culpa. Você escolheu esquecer. E, por isso, é culpado. Sob o olhar do altar, a sua ignorância não salva ninguém.

Por isso merece sofrer.

Expiar seus pecados.

Pecador.

Pecado.

(Eu vi você cair).

Eu

corri noite adentro, o frio queimava meus ossos, meu casaco rasgado, e meus tênis desamarrados

a culpa é sua

pecador

você está doente

e eu sabia que era o fim, eu não tinha lugar para retornar.

A ponte estava ali, e eu subi no parapeito, sentia o ar noturno, mais uma vez, penetrar em meus pulmões, e estava ali a resposta. Coloquei as mãos no bolso e senti

a joia profana

e havia realmente um local para ir

e eu corri, corri, corri, e cheguei ao paraíso de noites aquecidas: a pequena estufa de hortênsias. E como elas eram bem cuidadas por Alex, as mãos habilidosas dele;

mas ele não estava ali,

e, no fundo, não importava;

o luar iluminou a solução:

a navalha.

E o fim estava no sangue.

Apenas fechei os olhos e me deixei explodir pela última vez em um buraco negro, e nós dois morremos juntos.

capítulo 12

arrependimento

Você estava ali.

vivo, vivo, vivo

Mas, na penumbra da noite, eu conseguia distinguir os sinais. Através das minhas lágrimas, eu sabia que havia chegado ao final das lembranças. Que dezembro havia chegado e, com ele, meu relacionamento com Jesse. Você estava ali, e não estava.

Pela primeira vez naquela noite, eu me aproximei de você, e tentei tocar-lhe as bochechas borradas de lágrimas. Queria consolá-lo, pedir desculpas. Mas você era intangível. Você não estava ali. Era minha culpa, sólida. Eu deixei você cair.

E você abriu a boca.

E o que me cortava saía de mim; sua voz se confundia com a minha, e quando notei, ela era uma só. Uma só batida, um só corpo, uma violência só. Eu era você. Não havia mais ninguém ali naquele quarto escuro, naquela manhã de maio.

O alarme soou.

O dia amanheceu.

E a vida seguiu.

Dizem que só existem sete forças no mundo físico. A maior delas é que une os núcleos dos átomos, e que mantém a própria integridade do universo. Eu digo que existe outra forma maior: a do hábito. Apenas ela me fez levantar mais um dia, com todas as memórias da noite anterior, e conseguir ser um ser humano minimamente funcional. Eu me levantei. Comi. Vomitei. Escovei os dentes. Bebi uma água e um remédio para o estômago. Tomei um banho. Encarei meus materiais de arte, e pensei ainda se valia a pena. E esperei.

Não sabia o porquê, até olhar o calendário e ver marcada a data, circulada em vermelho. Era a data final, o dia em que eu deveria estar me formando, mas, na verdade, era quando eu me encontraria com o Jesse. Ainda tinha algumas horas antes do encontro, mesmo assim, me arrumei e saí andando por aí. Quando finalmente deu o horário, fui em direção à ponte.

Ele estava ali.

Ainda mirrado, ainda um pouco surrado, no entanto, parecia um pouco mais alimentado que antes. As bochechas mais coradas. Usava um sobretudo cinza, que combinava bem com os cabelos dourados. Os olhos continuavam fundos, e eu sabia que, se ele tirasse aquelas camadas de roupa, ainda encontraria a mesma tatuagem de hortênsias; só que, agora, também encontraria as bandagens que ele usava para esconder as cicatrizes em seu pulso. Doía um pouco ver aquilo.

— Ei — ele disse.

— Ei — eu correspondi.

Ficamos em silêncio, sem saber o que dizer um para o outro.

— Cinco meses, né?

— Não vai perguntar se estou bem?

— Acho que você acharia isso meio chato.

Ele sorriu.

— É meio estafante. Eu não sei o que responder a maior parte das vezes, porque as pessoas não esperam a verdade, ou uma resposta pronta, que é mentir. Então eu fico sem saber o que responder, na verdade. Obrigado por não perguntar. Como você passou esses meses?

— Meio parado. Larguei a faculdade.

— Que merda. Você não estava indo bem no curso mesmo.

— Pois é.

— Eu gosto dos seus desenhos, no entanto.

— Obrigado. E você?

— Por aí. Fazendo terapia, mais.

— Que bom.

— É. Eu queria te pedir desculpas, Alex.

— Desculpas?

— Porque…

Quando eu acordei no hospital, eu vi apenas o branco. Eu fiquei muito aliviado. Porque eu tinha conseguido finalmente o que eu queria, que era morrer.

Mas aí tudo entrou em foco, eu vi o rosto de Nama e Chase, e eu soube que eu tinha errado o caminho em algum lugar. Algum cálculo errado na hora do lançamento. E eu quis morrer de novo, porque, agora, eu tinha preocupado as duas pessoas mais importantes da minha vida.

Mas eu estava cansado de viver.

Minha mãe tinha a voz de quem havia vivido mil vidas em uma.

— Por que, Jesse? — ela chorou ao meu lado.

Meu irmão também estava em lágrimas, mas ele tinha uma vermelhidão raivosa por debaixo, e falou:

— Alex e Dave acharam você a tempo e…

Ah, meus algozes favoritos.

Eu só queria fechar os olhos.

— Alex quer te ver, Jesse.

Eu o ignorei mais uma vez.

— Jesse?

— Me deixem em paz. Eu não quero ver ninguém.

— Jesse, por favor, fale com a gente. Chase me contou…

— Me deixem em paz, por favor.

— Que você foi na casa do seu pai…

você está doente

você sempre quer, não é

— O que aconteceu lá?

— Me deixem em paz! — eu xinguei.

Uma das enfermeiras apareceu e falou, em seguida, em murmúrios baixos com minha mãe.

— Tudo bem, Jesse. Já volto.

E os dois me deixaram com a minha solidão e a minha culpa.

Mas eu não poderia fugir para sempre.

Chase voltou uma hora depois, com comida.

— Para você. A enfermeira mandou.

Eu deixei de lado, ainda sem fome.

— Vai ficar sem comer?

Eu não disse nada.

— Porra Jesse, fala algo.

— Eu estraguei o Natal de todo mundo, não foi?

— Bem, foi. Mas o Natal já estava estragado pra você há muito tempo, né?

Fiquei em silêncio, e comecei a remexer a comida só para não ter que encarar o olhar incisivo do meu irmão. Ele estava do meu lado, e então, se sentou em uma poltrona, afundando-se. Estava cansado, e eu também.

— Porra, Jesse, eu tive tanto medo de te perder. Eu não queria…

— Eu sei.

— Por que, então?

Fiquei em silêncio, remexendo as respostas. Eu poderia dar várias, inclusive mentir para sair daquela situação. Porém, seria somente para voltar para a casa um, para o início da ladeira, e começar a rolar os problemas montanha acima novamente. Talvez fosse a hora de tentar uma nova abordagem.

Pedir ajuda.

— Eu… me sinto muito sozinho.

Chase ficou em silêncio.

— Eu sempre me senti muito solitário. E, às vezes, quando eu me sentia assim, eu procurava a companhia de outra pessoa.

Chase prendeu a respiração.

— Uma delas foi o Mitchell. Ele me prometeu que ficaríamos juntos, e que iríamos namorar.

O silêncio perdurou por mais algum tempo.

— Eu sabia disso — Chase disse, por fim.

— Você sabia?

— Ele me contou esses dias, desde o… que aconteceu. Mas eu desconfiava na época.

Eu me encolhi na cama. Meu segredo máximo com meu irmão era aquele.

Chase também tinha um para me contar, aparentemente.

— Eu quem decidi roubá-lo, mesmo ao custo da sua felicidade.

— Chase…

— Eu achava injusto você ganhar todas as coisas boas. Você era bom em tudo, e eu não. Você sempre foi mais atlético, mais bonito, mais inteligente. Eu queria uma coisa apenas minha. E quando chegamos para dividir Mitchell… eu o queria apenas para mim. E eu o consegui. Era minha vitória final sobre você — Chase desabafou, sentindo as lágrimas escorrerem. — Céus, a culpa foi minha?

— Não, Chase.

Mas eu não conseguia dizer mais nada.

Eu estava cansado.

— Eu só quero morrer.

O que fez Chase chorar ainda mais.

— Jesse, por favor, vamos procurar ajuda na terapia… você precisa, eu acho que preciso também… vamos, por favor.

Eu fiquei calado, mas assenti.

— Esses meses todos eu estive em um instituto psiquiátrico, e isso me ajudou, a princípio. Agora que estou livre, vejo um psiquiatra com frequência. Não que todo dia seja fácil — sorrio.

— Dave falou com você.

— Sim. Algo do tipo.

Quando eu voltei para casa, nos primeiros dias do ano novo, ele estava ali, nos jardins, esperando. Não sei como soubera que eu estava de alta do hospital, mas ele certamente tinha seus meios. Samuel estava atrás dele, mas Dave caminhou sozinho e tremendo em minha direção, o que eu achei de imensa coragem da parte dele. Ele estava com seu caderninho em mãos, e pediu para conversar comigo.

— Vou ficar de olho.

— Mãe…

— Fique meia hora só, Jesse.

Agora eu tinha horário, que ótimo. Ao mesmo tempo, era bom ver que ela se importava.

— Eu tenho um discurso preparado, então me aguente — ele falou, enquanto Chase e Nama entravam na casa. Minha mãe ficou na janela da sala de estar, olhava para nós nos jardins. Dave começou. — Jesse, seu filho da puta desgraçado…

— Ei, como você fala assim de um enfermo?

— “Como você tem coragem de nos abandonar? Como você tem coragem de fazer isso na casa de Alex? Como você tem coragem de… repetir meus erros?” Ah, foda-se, vou improvisar.

Ele pigarreou, os olhos de mel turvos.

— Você sabe que as coisas não podem continuar desse jeito. Você não pode voltar para nossas vidas e as coisas simplesmente continuarem as mesmas.

— Eu sei que fiz merda, Dave, mas quero reatar as coisas com Alex.

— Não do jeito que vocês deixaram as coisas. Alex ficou uma merda depois que você foi embora. Não importa os motivos, você tomou uma decisão egoísta e mudou tudo. Ainda mais sem querer vê-lo no hospital.

— Eu sei.

— Você tem noção do quanto ele se culpa? Foi o estilete dele.

— Me parece que apenas tomei a mesma decisão que você.

Dave era fúria encarnada, mas Samuel segurou em seu ombro.

— Então é isso? Vai agourar a vida de Alex, um fantasma em forma viva?

— Não é isso que você faz? Fica de mãos dadas com ele, impedindo-o de seguir em frente?

Nós dois ficamos parados, as palavras apenas cortavam nossas peles; a cicatriz em ambos nossos pulsos, irmãs gêmeas, tinham nascido no mesmo local onde hortênsias floresciam.

— Vai ficar parado para sempre?

— E você? Vai fazer o mesmo?

Nós dois ficamos em silêncio, a compreensão e o amor mútuo à mesma pessoa presente. Estávamos ressentidos um com o outro, porque abusamos da mesma pessoa várias e várias vezes. E ela nos perdoaria, todas as vezes.

Mas era a hora de parar.

— E agora?

— Por hora, vou continuar meu tratamento. Eu tenho coisas que eu preciso resolver por mim mesmo, que eu não conseguia por estar tão preso dentro de mim. E eu te machuquei. Não sei como você espera que exista algo entre nós depois do que eu fiz.

Meus sentimentos transbordaram.

— Eu amo você.

Porém, não alcançaram os dele.

— Eu não consigo responder a isso nesse momento. Por agora, eu não consigo amar ninguém, nem a mim mesmo. Eu…

— Não quero lhe forçar a nada.

— Eu sei, Alex. Eu sei que você é a criatura mais gentil que existe na Terra. Mas você também tem sua cota de problemas. Eu sei que você se apaga para que as outras estrelas possam brilhar. Eu não quero isso. Eu quero que você consiga ser feliz também.

— Você não pode tomar essa decisão por mim.

— Se eu puder te fazer um pouco mais feliz estando longe de você, eu irei.

— Eu não quero ficar longe de você.

— E nem eu de você…, mas precisamos de um tempo. Foi tudo muito rápido. Muito intenso. Nos consumimos de uma forma que nos queimamos por inteiro.

— Jesse…

— Se for pra ser, assim será.

— Eu vou te esperar.

— Não quero que me espere. Quero que viva. E se algum dia for para eu voltar pra você, nós faremos dar certo.

Nos olhamos, como dois planetas se atraindo, mas, finalmente, saí de sua órbita. E com um abraço final, terno e quente, nos despedimos pela última vez naquela manhã de maio.

Não sei como encontrei forças para retornar para casa. Meus passos me levaram perigosamente para perto do parapeito da ponte, e eu encarei-a por algum tempo, na tentativa de ver algo

a luz

o nada

uma estrela cadente.

Até encontrar forças para retornar para o meu apartamento e para minha vida normal; para capturar os fragmentos e tentar fazer um vaso com eles, e talvez florescesse alguma semente dali.

Mas meus algozes não esperavam, e, na frente do meu apartamento, estava Dave e Samuel de mãos dadas. Que bom que aquele relacionamento foi para frente, ao menos. Às vezes, eu duvidava de Dave, ao mesmo tempo, era bom ver o quanto ele conseguia ser forte.

— Sam, eu preciso falar com Alex.

E ele assentiu e deixou que nós dois entrássemos no pequeno cômodo.

De repente, o kitnet parecia pequeno demais. Dave parecia ter crescido e se tornado um adulto, e eu a criança cansada. Estava tudo uma bagunça, cheia de caixas de delivery, e eu apenas esperei de pé enquanto Dave seguia para o fundo do apartamento.

Não sabia o que ele queria.

— Sabe, Alex… nós adiamos essa conversa por tanto tempo, que nem sei como começar.

Fiquei em silêncio e apenas cruzei os braços.

 — Você sabe muito bem como cuidar das pessoas, mas não faz a mínima ideia de como cuidar de si mesmo. Você sempre fugiu dessa responsabilidade em específico. Está na hora de reaver relações, e parar de fingir que está tudo bem entre nós.

— Mas está…

está tudo bem?

(não está, ecoou)

— Eu sei que meu histórico de mentiras não é muito bom, e por isso você e minha mãe desconfiam muito de mim, mas, pela primeira vez, quero ter uma conversa honesta com você. Sem mentiras, engodos ou enganações. Apenas a verdade.

Ele sentou-se na cama, e me convidou a fazer o mesmo.

— Nós fomos ligados pelo o que aconteceu, mas…

não solte a minha mão

não vou soltar

— Tem outra coisa que aconteceu que eu preciso te contar.

— Fale.

— O tutor…

— Porter — cuspi o nome dele. — Ele era um desgraçado.

— Você sabe que ele me abusou de verdade. Eu tinha treze anos.

Fiquei em silêncio. Na época, não estava claro como aconteceram as coisas. Dave dissera que eles tiveram um caso, mas, agora, pensando bem, que homem de vinte anos deveria ter um caso com uma criança? Era muito estranho. Um ódio me subiu a garganta, e lágrimas desceram dos meus olhos.

Porque a culpa era minha.

— Ele me contatou naquele dia em que eu fugi. Eu ainda não sabia lidar com isso, e minha ansiedade precisava ser extravasada. Desculpe-me se te preocupei.

—  Dave, me desculpa, eu… eu fui cego.

— Não precisa pedir desculpas, Alex, não foi você quem me abusou.

— Mas fui eu quem te apresentei o cara, que fiz você confiar nele.

— Mas você não tinha como saber. E mais do que tudo, todos os dias você me proveu com uma coisa para que eu pudesse me recuperar. Você me proveu seu tempo e amor, o que eu agradeço demais.

E ele segurou as minhas mãos trêmulas e frias; e delas, nasceu uma semente.

— Agora é você quem precisa de tempo e amor, meu amigo. Tempo, amor e recursos. Acho que consigo providenciar algumas coisas para você, só que outras, apenas você precisa pedir.

E, nas minhas mãos, apareceu um celular novo, com um número desconhecido no visor.

— Dave?

— Disque aí.

Completei a ligação e coloquei o telefone contra meu ouvido. Os segundos em que o celular apitava fizeram nascer várias vinhas; e quando finalmente ouvi a voz daquela pessoa, daquele homem que um dia foi tudo para mim e que agora era um completo estranho, eu senti a minha voz falhar.

— Pai?

— Alex?

Minha voz não saía, e eu não sabia o que dizer. Olhei para Dave, que me encorajava com uma mão em minha perna. A voz de meu pai era profunda e encantadora.

— Você está bem?

E, no fundo, importava.

Minhas lágrimas inundaram a plantação, e as hortênsias finalmente deram sua última flor:

— Não, não estou.

capítulo 13

o lugar ao qual eu pertenço

5 ANOS DEPOIS

Aquela ponte era um ponto nostálgico já. Era meio mórbido, porque, aparentemente, no último final de semana, mais um ciclista tinha perdido a vida ali; então estavam pensando em fechá-la por um tempo para a passagem de carros, e permitir apenas a passagem de pedestres; talvez ela se tornasse um ponto turístico. De qualquer forma, deixei um pequeno ramo de hortênsias brancas no pequeno memorial, como fazia com todos os outros, em um singelo ritual.

Mas, em minhas mãos, estava o outro componente daquele encontro, e logo encontrei meu “encontro quente” da vez. O certo, para variar.

Ele tinha mudado muito, e nada, naqueles cinco anos. O rosto estava mais fino, os músculos mais inchados, mesma altura baixinha. Cabelos dourados mais curtos, olhar mais afiado. Roupas mais decentes, o mesmo sobretudo cinza. Ele aceitou o picolé, mesmo sendo o meio de novembro; e o inverno começava a chamar nossos nomes nos uivos das montanhas, no entanto, ele apenas sorriu ante a brincadeira.

— É bem a sua cara mesmo, Alex.

— Prometo que atende todas as restrições pós-pandemia.

Jesse ficou em silêncio, um sorriso no rosto. Cinco anos nos separavam. Nós havíamos mudado.

— Mitchell e Chase vão se mudar para um apartamento próprio.

— Dave me contou.

— Odeio gente feliz no amor. Dave está namorando o agente dele, né? Que horror, ser feliz na carreira e ainda conseguir um gato daqueles de namorado.

Eu soltei uma risada.

— Seu pai também está de namorada nova, né?

— Sim, o que torna muito inconveniente morar com ele. Depois de eu terminar a faculdade, eu achei que ele fosse sossegar e me deixar em paz; mas agora ele fica me azucrinando pra eu cuidar da loja, para que ele possa ter tempo livre de sair com a moça por aí.

— Você está bem com isso?

Dei de ombros.

— No fundo, sim. É pacato, e é bom. Não é um mau futuro.

— Entendo… eu terminei agora um curso de gestão de projetos. Estou aplicando para algumas empresas; as entrevistas sempre acabam em um lugar interessante quando eu falo que fui modelo vivo.

— Consigo imaginar bem a cena.

— É bem atarefado, mas é bom.

E era. Porque sua estrela estava radiante como o Sol, e você estava feliz. Era bom aquilo, saber que você decidiu continuar, e que o Destino foi gentil conosco. Não precisaríamos de glorias ou de fanfarrões, apenas de pequenas vitórias do dia a dia; e a cada dia vencido, seria uma noite a mais na Terra. E, no fundo, era o que importava.

— E quanto aos seus dates no Tinder?

Encostei-me no parapeito da ponte, sabia que chegaríamos naquele ponto. Em algum momento do ano passado, Dave tinha achado que era hora de acabar com meu celibato patético, e me inscreveu no Tinder de novo, sem parar de encher meu saco de novo até que eu o usasse. E até que o usei. Mas…

— Sem sucesso até agora.

— Por quê?

— Sinceridade acima de tudo?

Ele assentiu.

— Por mais que eu tenha tentado seguir em frente, eu nunca, de fato, consegui te superar, Jesse.

Nós dois voltamos a ficar em silêncio, e eu encarei o nada. Olhei para o longe, para a luz que ficava do outro lado, e talvez ela tivesse piscado, e talvez fosse a hora de ir. Mas, antes, você começou a falar, e eu decidi esperar meu julgamento.

— Alex… por mais que eu tenha decidido me afastar da sua vida, para que nossas decisões não influenciassem uma do outro, nesses cinco anos, eu me pegava pensando… ponderava se você estava feliz, se nós dois… se nós dois não erramos por não estarmos juntos. Eu senti sua falta esse tempo todo.

E meu coração saltou no tempo espaço e encontrou você.

— Eu ainda não estou bem, e não sei sequer se um dia estarei, mas…

— Eu também não sei estar bem sem você.

Frente a frente, meu Sol encontrou a sua Estrela e formamos uma galáxia — apenas nossa, com muitos anos ainda pela frente. Meu rosto se aproximou do seu, o tempo perdido estampado nele, e decidi que nunca mais deixaria aqueles lábios sem beijá-los.

Toquei nossas testas, e você murmurou:

— Devagar dessa vez.

E o tempo parou quando nos encontramos no universo.

Jesse interrompeu o beijo, e eu achei que tinha feito algo errado, dito algo errado, errado de novo, mas:

— Não, espera! Acho que vi uma estrela cadente!

— É? — Eu me virei para os céus, mas eles continuavam tão limpos quanto antes.

— Bem, não foi nada. Volte aqui. — Me puxou de novo pela lapela e me beijou devidamente.

Ficamos ali um tempo, nos beijando, quando o frio finalmente chegou em nossos ossos.

— Vamos tomar um café em algum lugar? — convidei, e ofereci minha mão a ele.

— Prefiro um sorvete. — Ele riu, tomando-a, e nossos laços eram intransponíveis.

Fomos embora da ponte, deixando toda a mágoa, mas também pequenos fragmentos de felicidade; agora que estávamos juntos, o inverno de novembro não parecia tão frio.

FIM