capítulo 12
arrependimento
Você estava ali.
vivo, vivo, vivo
Mas, na penumbra da noite, eu conseguia distinguir os sinais. Através das minhas lágrimas, eu sabia que havia chegado ao final das lembranças. Que dezembro havia chegado e, com ele, meu relacionamento com Jesse. Você estava ali, e não estava.
Pela primeira vez naquela noite, eu me aproximei de você, e tentei tocar-lhe as bochechas borradas de lágrimas. Queria consolá-lo, pedir desculpas. Mas você era intangível. Você não estava ali. Era minha culpa, sólida. Eu deixei você cair.
E você abriu a boca.
E o que me cortava saía de mim; sua voz se confundia com a minha, e quando notei, ela era uma só. Uma só batida, um só corpo, uma violência só. Eu era você. Não havia mais ninguém ali naquele quarto escuro, naquela manhã de maio.
O alarme soou.
O dia amanheceu.
E a vida seguiu.
Dizem que só existem sete forças no mundo físico. A maior delas é que une os núcleos dos átomos, e que mantém a própria integridade do universo. Eu digo que existe outra forma maior: a do hábito. Apenas ela me fez levantar mais um dia, com todas as memórias da noite anterior, e conseguir ser um ser humano minimamente funcional. Eu me levantei. Comi. Vomitei. Escovei os dentes. Bebi uma água e um remédio para o estômago. Tomei um banho. Encarei meus materiais de arte, e pensei ainda se valia a pena. E esperei.
Não sabia o porquê, até olhar o calendário e ver marcada a data, circulada em vermelho. Era a data final, o dia em que eu deveria estar me formando, mas, na verdade, era quando eu me encontraria com o Jesse. Ainda tinha algumas horas antes do encontro, mesmo assim, me arrumei e saí andando por aí. Quando finalmente deu o horário, fui em direção à ponte.
Ele estava ali.
Ainda mirrado, ainda um pouco surrado, no entanto, parecia um pouco mais alimentado que antes. As bochechas mais coradas. Usava um sobretudo cinza, que combinava bem com os cabelos dourados. Os olhos continuavam fundos, e eu sabia que, se ele tirasse aquelas camadas de roupa, ainda encontraria a mesma tatuagem de hortênsias; só que, agora, também encontraria as bandagens que ele usava para esconder as cicatrizes em seu pulso. Doía um pouco ver aquilo.
— Ei — ele disse.
— Ei — eu correspondi.
Ficamos em silêncio, sem saber o que dizer um para o outro.
— Cinco meses, né?
— Não vai perguntar se estou bem?
— Acho que você acharia isso meio chato.
Ele sorriu.
— É meio estafante. Eu não sei o que responder a maior parte das vezes, porque as pessoas não esperam a verdade, ou uma resposta pronta, que é mentir. Então eu fico sem saber o que responder, na verdade. Obrigado por não perguntar. Como você passou esses meses?
— Meio parado. Larguei a faculdade.
— Que merda. Você não estava indo bem no curso mesmo.
— Pois é.
— Eu gosto dos seus desenhos, no entanto.
— Obrigado. E você?
— Por aí. Fazendo terapia, mais.
— Que bom.
— É. Eu queria te pedir desculpas, Alex.
— Desculpas?
— Porque…
Quando eu acordei no hospital, eu vi apenas o branco. Eu fiquei muito aliviado. Porque eu tinha conseguido finalmente o que eu queria, que era morrer.
Mas aí tudo entrou em foco, eu vi o rosto de Nama e Chase, e eu soube que eu tinha errado o caminho em algum lugar. Algum cálculo errado na hora do lançamento. E eu quis morrer de novo, porque, agora, eu tinha preocupado as duas pessoas mais importantes da minha vida.
Mas eu estava cansado de viver.
Minha mãe tinha a voz de quem havia vivido mil vidas em uma.
— Por que, Jesse? — ela chorou ao meu lado.
Meu irmão também estava em lágrimas, mas ele tinha uma vermelhidão raivosa por debaixo, e falou:
— Alex e Dave acharam você a tempo e…
Ah, meus algozes favoritos.
Eu só queria fechar os olhos.
— Alex quer te ver, Jesse.
Eu o ignorei mais uma vez.
— Jesse?
— Me deixem em paz. Eu não quero ver ninguém.
— Jesse, por favor, fale com a gente. Chase me contou…
— Me deixem em paz, por favor.
— Que você foi na casa do seu pai…
você está doente
você sempre quer, não é
— O que aconteceu lá?
— Me deixem em paz! — eu xinguei.
Uma das enfermeiras apareceu e falou, em seguida, em murmúrios baixos com minha mãe.
— Tudo bem, Jesse. Já volto.
E os dois me deixaram com a minha solidão e a minha culpa.
Mas eu não poderia fugir para sempre.
Chase voltou uma hora depois, com comida.
— Para você. A enfermeira mandou.
Eu deixei de lado, ainda sem fome.
— Vai ficar sem comer?
Eu não disse nada.
— Porra Jesse, fala algo.
— Eu estraguei o Natal de todo mundo, não foi?
— Bem, foi. Mas o Natal já estava estragado pra você há muito tempo, né?
Fiquei em silêncio, e comecei a remexer a comida só para não ter que encarar o olhar incisivo do meu irmão. Ele estava do meu lado, e então, se sentou em uma poltrona, afundando-se. Estava cansado, e eu também.
— Porra, Jesse, eu tive tanto medo de te perder. Eu não queria…
— Eu sei.
— Por que, então?
Fiquei em silêncio, remexendo as respostas. Eu poderia dar várias, inclusive mentir para sair daquela situação. Porém, seria somente para voltar para a casa um, para o início da ladeira, e começar a rolar os problemas montanha acima novamente. Talvez fosse a hora de tentar uma nova abordagem.
Pedir ajuda.
— Eu… me sinto muito sozinho.
Chase ficou em silêncio.
— Eu sempre me senti muito solitário. E, às vezes, quando eu me sentia assim, eu procurava a companhia de outra pessoa.
Chase prendeu a respiração.
— Uma delas foi o Mitchell. Ele me prometeu que ficaríamos juntos, e que iríamos namorar.
O silêncio perdurou por mais algum tempo.
— Eu sabia disso — Chase disse, por fim.
— Você sabia?
— Ele me contou esses dias, desde o… que aconteceu. Mas eu desconfiava na época.
Eu me encolhi na cama. Meu segredo máximo com meu irmão era aquele.
Chase também tinha um para me contar, aparentemente.
— Eu quem decidi roubá-lo, mesmo ao custo da sua felicidade.
— Chase…
— Eu achava injusto você ganhar todas as coisas boas. Você era bom em tudo, e eu não. Você sempre foi mais atlético, mais bonito, mais inteligente. Eu queria uma coisa apenas minha. E quando chegamos para dividir Mitchell… eu o queria apenas para mim. E eu o consegui. Era minha vitória final sobre você — Chase desabafou, sentindo as lágrimas escorrerem. — Céus, a culpa foi minha?
— Não, Chase.
Mas eu não conseguia dizer mais nada.
Eu estava cansado.
— Eu só quero morrer.
O que fez Chase chorar ainda mais.
— Jesse, por favor, vamos procurar ajuda na terapia… você precisa, eu acho que preciso também… vamos, por favor.
Eu fiquei calado, mas assenti.
— Esses meses todos eu estive em um instituto psiquiátrico, e isso me ajudou, a princípio. Agora que estou livre, vejo um psiquiatra com frequência. Não que todo dia seja fácil — sorrio.
— Dave falou com você.
— Sim. Algo do tipo.
Quando eu voltei para casa, nos primeiros dias do ano novo, ele estava ali, nos jardins, esperando. Não sei como soubera que eu estava de alta do hospital, mas ele certamente tinha seus meios. Samuel estava atrás dele, mas Dave caminhou sozinho e tremendo em minha direção, o que eu achei de imensa coragem da parte dele. Ele estava com seu caderninho em mãos, e pediu para conversar comigo.
— Vou ficar de olho.
— Mãe…
— Fique meia hora só, Jesse.
Agora eu tinha horário, que ótimo. Ao mesmo tempo, era bom ver que ela se importava.
— Eu tenho um discurso preparado, então me aguente — ele falou, enquanto Chase e Nama entravam na casa. Minha mãe ficou na janela da sala de estar, olhava para nós nos jardins. Dave começou. — Jesse, seu filho da puta desgraçado…
— Ei, como você fala assim de um enfermo?
— “Como você tem coragem de nos abandonar? Como você tem coragem de fazer isso na casa de Alex? Como você tem coragem de… repetir meus erros?” Ah, foda-se, vou improvisar.
Ele pigarreou, os olhos de mel turvos.
— Você sabe que as coisas não podem continuar desse jeito. Você não pode voltar para nossas vidas e as coisas simplesmente continuarem as mesmas.
— Eu sei que fiz merda, Dave, mas quero reatar as coisas com Alex.
— Não do jeito que vocês deixaram as coisas. Alex ficou uma merda depois que você foi embora. Não importa os motivos, você tomou uma decisão egoísta e mudou tudo. Ainda mais sem querer vê-lo no hospital.
— Eu sei.
— Você tem noção do quanto ele se culpa? Foi o estilete dele.
— Me parece que apenas tomei a mesma decisão que você.
Dave era fúria encarnada, mas Samuel segurou em seu ombro.
— Então é isso? Vai agourar a vida de Alex, um fantasma em forma viva?
— Não é isso que você faz? Fica de mãos dadas com ele, impedindo-o de seguir em frente?
Nós dois ficamos parados, as palavras apenas cortavam nossas peles; a cicatriz em ambos nossos pulsos, irmãs gêmeas, tinham nascido no mesmo local onde hortênsias floresciam.
— Vai ficar parado para sempre?
— E você? Vai fazer o mesmo?
Nós dois ficamos em silêncio, a compreensão e o amor mútuo à mesma pessoa presente. Estávamos ressentidos um com o outro, porque abusamos da mesma pessoa várias e várias vezes. E ela nos perdoaria, todas as vezes.
Mas era a hora de parar.
— E agora?
— Por hora, vou continuar meu tratamento. Eu tenho coisas que eu preciso resolver por mim mesmo, que eu não conseguia por estar tão preso dentro de mim. E eu te machuquei. Não sei como você espera que exista algo entre nós depois do que eu fiz.
Meus sentimentos transbordaram.
— Eu amo você.
Porém, não alcançaram os dele.
— Eu não consigo responder a isso nesse momento. Por agora, eu não consigo amar ninguém, nem a mim mesmo. Eu…
— Não quero lhe forçar a nada.
— Eu sei, Alex. Eu sei que você é a criatura mais gentil que existe na Terra. Mas você também tem sua cota de problemas. Eu sei que você se apaga para que as outras estrelas possam brilhar. Eu não quero isso. Eu quero que você consiga ser feliz também.
— Você não pode tomar essa decisão por mim.
— Se eu puder te fazer um pouco mais feliz estando longe de você, eu irei.
— Eu não quero ficar longe de você.
— E nem eu de você…, mas precisamos de um tempo. Foi tudo muito rápido. Muito intenso. Nos consumimos de uma forma que nos queimamos por inteiro.
— Jesse…
— Se for pra ser, assim será.
— Eu vou te esperar.
— Não quero que me espere. Quero que viva. E se algum dia for para eu voltar pra você, nós faremos dar certo.
Nos olhamos, como dois planetas se atraindo, mas, finalmente, saí de sua órbita. E com um abraço final, terno e quente, nos despedimos pela última vez naquela manhã de maio.
Não sei como encontrei forças para retornar para casa. Meus passos me levaram perigosamente para perto do parapeito da ponte, e eu encarei-a por algum tempo, na tentativa de ver algo
a luz
o nada
uma estrela cadente.
Até encontrar forças para retornar para o meu apartamento e para minha vida normal; para capturar os fragmentos e tentar fazer um vaso com eles, e talvez florescesse alguma semente dali.
Mas meus algozes não esperavam, e, na frente do meu apartamento, estava Dave e Samuel de mãos dadas. Que bom que aquele relacionamento foi para frente, ao menos. Às vezes, eu duvidava de Dave, ao mesmo tempo, era bom ver o quanto ele conseguia ser forte.
— Sam, eu preciso falar com Alex.
E ele assentiu e deixou que nós dois entrássemos no pequeno cômodo.
De repente, o
kitnet parecia pequeno demais. Dave parecia ter crescido e se tornado um adulto, e eu a criança cansada. Estava tudo uma bagunça, cheia de caixas de delivery, e eu apenas esperei de pé enquanto Dave seguia para o fundo do apartamento.
Não sabia o que ele queria.
— Sabe, Alex… nós adiamos essa conversa por tanto tempo, que nem sei como começar.
Fiquei em silêncio e apenas cruzei os braços.
— Você sabe muito bem como cuidar das pessoas, mas não faz a mínima ideia de como cuidar de si mesmo. Você sempre fugiu dessa responsabilidade em específico. Está na hora de reaver relações, e parar de fingir que está tudo bem entre nós.
— Mas está…
está tudo bem?
(não está, ecoou)
— Eu sei que meu histórico de mentiras não é muito bom, e por isso você e minha mãe desconfiam muito de mim, mas, pela primeira vez, quero ter uma conversa honesta com você. Sem mentiras, engodos ou enganações. Apenas a verdade.
Ele sentou-se na cama, e me convidou a fazer o mesmo.
— Nós fomos ligados pelo o que aconteceu, mas…
não solte a minha mão
não vou soltar
— Tem outra coisa que aconteceu que eu preciso te contar.
— Fale.
— O tutor…
— Porter — cuspi o nome dele. — Ele era um desgraçado.
— Você sabe que ele me abusou de verdade. Eu tinha treze anos.
Fiquei em silêncio. Na época, não estava claro como aconteceram as coisas. Dave dissera que eles tiveram um caso, mas, agora, pensando bem, que homem de vinte anos deveria ter um caso com uma criança? Era muito estranho. Um ódio me subiu a garganta, e lágrimas desceram dos meus olhos.
Porque a culpa era minha.
— Ele me contatou naquele dia em que eu fugi. Eu ainda não sabia lidar com isso, e minha ansiedade precisava ser extravasada. Desculpe-me se te preocupei.
— Dave, me desculpa, eu… eu fui cego.
— Não precisa pedir desculpas, Alex, não foi você quem me abusou.
— Mas fui eu quem te apresentei o cara, que fiz você confiar nele.
— Mas você não tinha como saber. E mais do que tudo, todos os dias você me proveu com uma coisa para que eu pudesse me recuperar. Você me proveu seu tempo e amor, o que eu agradeço demais.
E ele segurou as minhas mãos trêmulas e frias; e delas, nasceu uma semente.
— Agora é você quem precisa de tempo e amor, meu amigo. Tempo, amor e recursos. Acho que consigo providenciar algumas coisas para você, só que outras, apenas você precisa pedir.
E, nas minhas mãos, apareceu um celular novo, com um número desconhecido no visor.
— Dave?
— Disque aí.
Completei a ligação e coloquei o telefone contra meu ouvido. Os segundos em que o celular apitava fizeram nascer várias vinhas; e quando finalmente ouvi a voz daquela pessoa, daquele homem que um dia foi tudo para mim e que agora era um completo estranho, eu senti a minha voz falhar.
— Pai?
— Alex?
Minha voz não saía, e eu não sabia o que dizer. Olhei para Dave, que me encorajava com uma mão em minha perna. A voz de meu pai era profunda e encantadora.
— Você está bem?
E, no fundo, importava.
Minhas lágrimas inundaram a plantação, e as hortênsias finalmente deram sua última flor:
— Não, não estou.